quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

O Romeu drogado ou Vera querida, eu chi amo! Parte 2


Subitamente entra no plantão Vera querida, acompanhada por dois brigadianos que conduziam o Romeu drogado. Inconformado, este exclamava seu amor pela cabeleireira, tal como acontecera alguns dias antes. Um único pensamento passou por minha cabeça: -De novo!!! A violação das medidas protetivas levou o casal até nós, num curto espaço de tempo. Os colegas da BM explicaram brevemente o que havia ocorrido. Sendo hora do almoço, o plantonista dera uma rápida saída, aliás, como os demais da DP. Apenas eu, um colega da Volante e Deus estávamos no prédio. Eu dizia tantos “ai meu Deus”, que, suponho, Ele desceu do céu para o plantão. Os PMs foram chamados para outra ocorrência, saíram para retornar mais tarde. A cabeleireira foi em busca de algum alimento. Ali permanecemos com o Romeu choroso, que imediatamente anunciou que poria fim a própria vida. Deixamos que fizesse sua cena, apenas observando o protagonista, até ele começar a bater com a cabeça na parede.  Meu colega tentou fazê-lo parar, advertindo-o sobre os ferimentos, eticetera, eticetera, e nada, a gritaria continuou, acompanhada das cabeçadas. A possibilidade do sujeito ficar com lesões nos deixou preocupados. Sabíamos da nossa responsabilidade pela integridade física do preso. Preocupava-nos a possibilidade do preso adquirir lesões sob a nossa custódia e, também, por estarmos os dois em estágio probatório. Bateu a insegurança. As pessoas passavam na calçada e espiavam pelas janelas da delegacia. Os gritos aguçavam a curiosidade dos passantes. Meu colega pediu que eu segurasse o Romeu, enquanto telefonava solicitando o retorno da PM. Cruzei as mãos atrás do pescoço do homem autolesivo e passei a puxá-lo para frente, para impedir que sua cabeça batesse na parede. Da janela, as pessoas me viam puxar a criatura em minha direção e ele a gritar. Eu suava muito com o esforço e estava bastante tensa por participar daquela cena, no mínimo, estranha. Não podíamos pedir ajuda aos transeuntes! Ficaria na história da pequena cidade o pedido de socorro da polícia aos cidadãos. Comecei a ficar preocupada com o ridículo da situação; a platéia, que agora era minha e dele, poderia interpretar que eu assediava o preso, e que ele gritava por não aceitar o assédio. Finalmente meu colega terminou os telefonema. Pude, então, interromper aquela ridicularia. Busquei algo para amortecer as cabeçadas. Abençoado Código Penal! Funcionou, graças ao bom Deus! O plantonista retornou, para nosso alívio, e junto chegaram os PMs, fato que modificou a conduta do Romeu tornando-se muito calmo. Hoje, ao lembrar o episódio, percebo que a minha inexperiência, assim como a do colega, certamente deram asas ao abuso de paciência por parte daquela criatura, que encenou o tempo inteiro, deixando-nos em estado total de exaustão. Iniciado o registro da ocorrência, ficamos sabendo que nosso preso escandaloso tinha um histórico de muitas confusões, não trabalhava e vivia às custas da cabeleireira viúva. Dela provinha o dinheiro para as drogas. Estava com 29 anos de idade, e Vera querida com 53. Pelo que pude apurar, ela recebia uma pensão em razão da viuvez. Pode parecer pouco, mas é comum, em grupos menos favorecidos, uma mãe que recebe bolsa família por dois ou três filhos virar alvo de parasitas de tipos como o Romeu. Pois é, o nosso “herói” tinha razões para espernear. A perda da galinha dos ovos de ouro, certamente, o deixava muito preocupado. Vera querida agora se comportava como uma mãe austera, ameaçando abandoná-lo, sem dinheiro para suas “pedrinhas”. Pensam que terminou por aí? Não! Apesar das afirmativas contrárias, a cabeleireira voltou ao convívio de seu amado que, embora fosse um estorvo, a fazia sentir-se invejada em razão de ser um companheiro tão jovem.  Soubemos da reconciliação quando, duas semanas mais tarde, ela retornou à delegacia acompanhada do irmão, da cunhada e de uma sobrinha, os quatro se dizendo ameaçados de morte pelo Romeu drogado. Ela evitava olhar em minha direção. Dava para perceber que Vera querida sabia haver esgotado a cota de paciência de todos os presentes, particularmente, a minha, uma vez que eu já me expressara de forma bastante clara sobre aquele circo que o casal formava com seus desentendimentos.  O abençoado celular da Volante tocou chamando para um trabalho externo, o que teve o valor de um presente para mim. Pensei: -Adeus, Vera querida! De preferência, até nunca mais!!! Mas eu só quis dizer. 

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

O Romeu drogado ou Vera querida, eu “chi” amo! Parte 1


Como já havia ocorrido em outras ocasiões, ela entrou na DP para ser protegida do atual companheiro. Eu ignorava a habitualidade das brigas travadas pelo casal. Estava iniciando minha carreira policial e, conseqüentemente, ansiosa por ação. As queixas da mulher me deixaram indignada. Pobre mulher! pensava eu. O companheiro era usuário de drogas, facão, ameaças, e ela estava impossibilitada de buscar suas roupas na casa que, até aquele momento, havia sido seu lar. Relatou que tinha medo, enfim, mil mazelas, mas sem lágrimas. Na ocasião trabalhavam dois delegados na DP, ambos recém formados e igualmente ávidos por atuar. Em matéria de experiência na lida com a clientela de uma Delegacia, eles, assim como nós da Volante, eram totalmente"verdes". Imediatamente ficou determinado que a mulher, dita cabeleireira, seria levada à casa onde estavam seus pertences, para retirá-los sob nossa proteção. Era uma época chuvosa e, ao saber da missão, um colega veterano e morador da cidade alertou para o barro que iríamos encontrar na estrada. Outro agente, novato também, ao escutar a observação do veterano, e contrariando o costumeiro, prontamente me passou a chave da viatura para que eu dirigisse – a gente nunca escapa de ter um metido a esperto entre os colegas. Assumi a direção, e digo para quem não sabe, que com mulher polícia, nem o diabo pode! Saímos em direção ao tal local, levando junto a cabeleireira, seguidos por outro veículo, no qual estavam os dois delegados. Dizer que fomos para uma estrada embarrada me parece muito pouco. Era uma meleca só durante todo o caminho, com a viatura rabeando a cada momento. Confesso que jamais havia dirigido no barro. A mulher indicava o caminho na base dos “dobra aqui e é logo ali”, intermináveis. Chegamos ao local finalmente; hora de enfrentar a fera drogada. Visualizamos um sujeito na soleira da porta. Quando avistou quatro policiais com armas na mão, a criatura passou a choramingar, chamando pela mulher numa cena lamentável. Colocamos uma cadeira no lado de fora do barraco e algemamos a ela o “perigoso”, para que não corresse atrás da protegida. Ele só fazia prantear a ingratidão da cabeleireira que estava por abandoná-lo. Reunidos em trouxas os pertences, saímos em disparada após soltar o homem, que ainda tentou correr atrás dos carros, tal como faria um cão querendo alcançar seu dono. A propósito, o nome da mulher era Vera. Em suas exclamações chorosas com características de estado de embriaguez, ele lamentava: -Vera, querida, eu “chi” amo! Por que isso, Vera!? Não vai embora, meu amor!
Na operação resgate dos pertences da vítima, dava para perceber um certo ar de travessura em nós, policiais. Verdinhos,verdinhos! Havíamos conseguido fugir do Romeu drogado, embora a persistência dele, por instantes, até nos tenha feito imaginar o contrário.  Voltamos para a DP com os veículos cobertos de barro, jurando que o episódio estava encerrado. Só que não! Mas eu só quis dizer.  

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Entre a surra e a Ritalina


Numa tarde de plantão, entrou na DP uma mulher acompanhada de um adolescente magrinho, de ar cansado. Não há erro, não, cansado era o jovenzinho. Logo, eu e meu colega verificamos tratar-se de mãe e filho. O menino sentou, apoiando os cotovelos sobre os joelhos, deixando que as mãos sustentassem o peso de sua cabeça. A mãe estava ali para registrar uma ocorrência. Contou que seus dois filhos eram doentes e tinham problemas, tomavam remédios receitados pelo “siquiatra”. Que dois indivíduos haviam ido a sua casa e oferecido trabalhos de cura espiritual, ou coisa que o valha, para resolver os problemas de saúde dos meninos. Para isso, cobraram a quantia de um mil e quatrocentos reais. Como o tal tratamento não surtiu efeito, na visita seguinte dos indivíduos ela reclamou. Os mesmos pediram mais setecentos reais para que o tratamento fosse concretizado com garantia de cura. Negou-se a pagar, dizendo que não queria mais saber de gastar dinheiro com um tratamento caro e que não apresentara qualquer resultado até o momento. Os indivíduos, provavelmente vendo a possibilidade de lucro frustrada, no dia seguinte esperaram pelo jovenzinho em seu percurso da escola para casa e lhe aplicaram uma surra “curativa”, quem sabe uma tentativa de exorcismo. A mãe ficou horrorizada ao saber da atitude dos supostos curandeiros. Depois do registro, arrisquei perguntar qual medicamento o guri tomava. Ela informou que o “siquiatra” havia receitado Ritalina. Perguntei se o menino era hiperativo. Saindo do estado de mutismo absoluto em que se encontrava desde sua entrada na DP, o menino, branco como uma vela, levantou a cabeça e respondeu num tom que beirava a irritação: -Eu não sou hiperativo, eu só não consigo dormir!
Diante disso, pensei comigo que nem a surra de exorcismo poderia superar os efeitos da Ritalina mal dosada e administrada diariamente. Eu e o colega aconselhamos que a mulher procurasse o médico, pois o remédio que este havia receitado poderia não estar fazendo o efeito necessário, eticetera e tal. Ela disse que provavelmente procuraria um médico de outra cidade, mesmo que fosse preciso pagar a consulta, pois não havia outro “siquiatra” na cidade em que ela residia, que era muito difícil conseguir uma consulta com o único existente. Apoiei a decisão, pois quem gastou com curandeirismo, certamente poderia pagar por uma consulta e dar a chance de o menino dormir como qualquer pessoa precisa. A mulher agradeceu o atendimento e a orientação e saiu, seguida pelo adolescente insone. Perguntei ao meu colega até quando eu poderia sobreviver naquele mar de absurdos, sem procurar um “siquiatra”. Rimos e prosseguimos na nossa rotina nada rotineira, onde tomamos conhecimento de situações inusitadas, sobre as quais, embora tomados de surpresa, precisamos encontrar palavras de orientação e conforto. O povo simples, sem cultura, fica a mercê de curandeiros e de médicos que receitam mas não acompanham os resultados de suas receitas (por razões que não cabem  ponderar no momento); sofre desnecessariamente em consequência da falta de princípios, das falhas do sistema de saúde e da ignorância. E o rapazinho insone, fica entre a surra e a Ritalina. Mas eu só quis dizer.     

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Entre a vocação e a desmotivação.

Fiquei triste ao saber da morte, em serviço, de um agente, colega da Civil de Caxias do Sul. Não o conheci, mas isso não impediu meu abatimento pela notícia. Ocorre que, na nossa profissão, somos todos ligados uns aos outros de uma forma bastante peculiar. Quando ocorre no exercício funcional, a fatalidade de um tem o peso de alerta para todos. Com a morte de um de nós em serviço, somos lembrados da nossa vulnerabilidade. Todos os seres vivos, ao pressentirem o perigo, tentam sair da situação de risco; o policial, contrariando o instinto natural, deve se deslocar para ela, o que é inerente ao exercício de suas atribuições. Somos poucos, muito poucos, e muito mal pagos para fazer nosso trabalho. Não sou credenciada a falar pelo grupo, no entanto posso falar dos meus sentimentos e daquilo que observo. A sociedade cobra segurança, desvendamento da autoria de crimes, prisão de traficantes e outros criminosos, mas parece ser completamente impermeável às constantes denúncias efetuadas pelos meios de comunicação sobre a falta de efetivo e os baixos rendimentos dos agentes. Parece pouco importar o que há por trás do contexto da segurança pública. E até dou razão a quem reclama segurança, pois os impostos são pagos para tê-la. Como cidadã, também clamo por ela, a fim de que meus familiares circulem em paz, e para, de uma maneira geral, haver qualidade de vida. Entretanto percebo a distância que nos separa desse tão reivindicado direito fundamental, na sua plenitude. Sei também o quanto é árduo o trabalho policial, que busca impedir a proliferação do crime que desassossega a vida em todas as comunidades, independentemente de suas dimensões. Nunca é demais ressaltar a existência de uma administração governamental historicamente falha, relegadora dos serviços de segurança pública. Tanto é verdade, que educação e segurança são os carros-chefes dos discursos de quem pretende se eleger. Depois, conquistada a vitória, inicia-se a tentativa de administrar a insatisfação do povo e dos servidores com verdadeiras esmolas. Somos poucos e fazemos muito com o pouco que nos disponibilizam. Gostaria de ter o dom de transmitir a garra caracterizadora  da ação dos policiais em operações. Muitos são jovens, com muito para viver. Todos deixam, em casa, suas famílias, seus amores, e vão cumprir sua obrigação funcional. Cada operação bem sucedida ilumina os rostos de todos, e o sorriso se transforma em regra geral. O ganho mensal, esgotado antes de cobrir as despesas básicas, é esquecido ao realizar a missão. Percebo pessoas vocacionadas ameaçadas pela desmotivação oriunda da falta de reconhecimento, inclusive financeiro. O trabalho realizado nunca é suficiente, pois a criminalidade aumenta exacerbadamente. Entre uma missão e outra, há o tempo para pensar no sentido da permanência na vida policial e nas perspectivas resultantes dela. De volta ao lar, se deparam com os problemas que resultam do dinheiro muito escasso para manter a família. Originam-se, assim, em consequência de uma administração deficiente, agentes desgostosos, para os quais a valorização é uma conquista remota que os assombra até a morte em ação, ou, com sorte, até a morte natural. A despeito disso tudo, uma coisa é certa: fazer parte da Instituição Polícia Civil orgulha e impulsiona ao cumprimento do dever, independente do esforço necessário para empreendê-lo. É o que sinto e o que observo. Mas eu só quis dizer.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Pé no barro.


Eu, calçando um par de tênis até um certo momento de cor preta. Um dos colega, com botas igualmente pretas, cuidadosamente polidas: um verdadeiro espelho. O barro, ali, desafiando a cada passo. Resignada encarei meu destino. A viatura atolada, o chassi encostado naquela massa avermelhada, e os pneus fazendo cócegas no lodo em seus giros inúteis. Desci do veículo como uma bailarina, na ponta dos pés. Ai, meu Deus, que meleca! Os três colegas falando em empurrar para desatolar. O das botas polidas cuidando para não macular o brilho delas. Decidiram que eu deveria assumir a direção enquanto empurravam. Me dirigi cuidadosamente para a porta do motorista e procurei o melhor local para pisar. Havia um montinho com aspecto seguro, e para ele dirigi meu pé esquerdo. Pisei firme e..., o pé afundou, como se o objetivo fosse fazer uma forma. Puxei de volta, e deu para ouvir o barulho aquoso da sucção do lodo querendo segurar o meu tênis. Por um instante pensei que ficaria só com a meia e teria que resgatar o maldito com as mãos. Pronto, libertei o calçado da lama. Parecia um pé monstruoso, marrom avermelhado sem forma identificável. Entrei na viatura sem conter as gargalhadas, deixando do lado de fora os risos e comentários dos colegas. Dei partida no motor pisando no pedal da embreagem com aquele pé grudento, com uma placa de barro enorme na sola. Ao acelerar dando ré, a roda levantou um esguicho de água lodosa. Deu para ver o desconforto dos colegas, que buscavam empurrar a viatura e fugir do esguicho. Conseguimos mover o carro e adeus barro, adeus botas-espelho. Voltamos para a base. Eu, calçando um par de tênis com um pé marrom e outro preto. Comentamos entre risos sobre o polimento das botas, lamentavelmente perdido na noite de campana, e sobre a cena da qual fui a protagonista. Exausta deixei de lado o tênis bicolor e caí num sono instantâneo, afinal, eram quase cinco horas de uma madrugada fria e molhada. Perto das sete horas tocou o telefone chamando para nova diligência. Olhei para o bicolor e rejeitei a idéia de calçá-lo. Mas, além dele, eu só tinha um par de chinelos de dedo. Imaginei-me chegando ao local do crime com chinelos e meias brancas. Desisti na hora. Fui, então, com a única opção restante; o bicolor, que certamente me deixou com dois centímetros a mais de altura, em vista das placas de barro aderidas às  solas. O curioso é que tenho saudade antecipada de tudo isso. É um rito de passagem. Para onde? Não sei, talvez para o mundo das memórias. Mas eu só quis dizer. 

domingo, 28 de agosto de 2011

Cabaré

Terça-feira, e uma cidade entregue ao sono noturno. O prédio, um esboço a sustentar o telhado. Quando se abriu, a porta deu visão a uma sala de paredes verdes, com toscos desenhos em tinta retrorrefletiva, um verdadeiro susto estético. No teto, um globo espelhado gira, produzindo uma dança de pontos de luz por todo o ambiente. Distribuídas pela sala, três mulheres de olhares desconfiados. Ao fundo, apenas um freguês, dormindo sentado, boca aberta, cabeça apoiada na parede. A música sertaneja muito alta não perturbava seu sono de embriaguez.

Uma pequena abertura numa das paredes permitia aos donos do estabelecimento alcançar as bebidas e observar o movimento da sala. Estes, um casal com idade em torno dos cinquenta anos, estavam ansiosos pelo despertar do último freguês, para encerrar a noite e ir para casa dormir. O mesmo ocorria com as mulheres. Nada mais as prendia no local, apenas aguardavam a liberação do casal. Queriam voltar para suas casas, para seus filhos e, curiosamente, uma delas, para o marido. Esta, com quarenta anos e seu marido com vinte e dois: – Guri de boa cabeça – segundo ela. Seis anos de união. Porque no início do namoro o rapaz tinha 16 anos, foi denunciada pela mãe dele e precisou responder na Justiça. Todas elas eram muito bem informadas sobre a Lei Maria da Penha. Uma admitiu ter saído de um casamento por ter apanhado do marido. Nunca mais voltou para o agressor e sustenta seus dois filhos com o que ganha no cabaré. Aos poucos vão ficando mais à vontade, falando sobre suas vidas e, timidamente, fazem perguntas para saciar a própria curiosidade. São mulheres que tomaram um determinado rumo por razões que não nos compete julgar. Carregam o ônus da própria escolha e da própria necessidade. Ninguém os carrega por elas. Com pecado ou sem pecado, não cabe atirar a primeira pedra. São pessoas com sonhos, esperanças e carências, muitas carências. O tratamento sem preconceito entusiasma, tranquiliza; é perceptível no olhar. Vida fácil? Quem disse? Aliás, não é fácil para ninguém, talvez seja para os com tempo livre para disseminar preconceitos. Vida, somente vida. Cada um com a sua história. Mas eu só quis dizer.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Campana.

Saí para uma operação noturna em uma cidadezinha. A chuva havia dado trégua, mas o barro, em alguns pontos, era muito semelhante a um mingau. Às vezes pegajoso, grudava na sola do tênis. A campana era próxima a um riacho fedorento, onde o esgoto da cidade deságua. Estava escuro e havia uma umidade incômoda. Éramos quatro agentes, divididos em duplas posicionadas em diferentes pontos. A casa observada mostrava luz interna, visível pelas frestas das precárias janelas. Ninguém à vista, saindo ou entrando. Depois de um período de tempo fui dar uma caminhada, para ver se ouvia vozes na casa. Se fosse vista não haveria problema. Naquela cidade, eu era uma total desconhecida. A rua estava escura, e era difícil saber onde pisava. Das casas vinham vozes de crianças e de adultos e sons dos televisores ligados, que iam ficando para trás, dando lugar aos sons das casas seguintes, à medida em que o trajeto era percorrido. A casa alvo estava no mais absoluto silêncio. Passei lentamente em frente, ouvidos aguçados, olhos querendo ver através das paredes. Depois de um tempo retornei. Pés pesados de barro, pensamentos difusos cortando a escuridão. Lembrei de meu marido e de meus filhos naquele momento. O que sentiriam me imaginando ali. Melhor não saberem. Eu escolhi assim. No dia seguinte estaria novamente em casa, na luz.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Paradoxo.

À meia noite e meia tocou a campainha do plantão. Aberto o portão, entraram um homem e uma mulher, ambos de meia idade. O homem, semblante inexpressivo, absolutamente calado sentou-se no banco e ali ficou imóvel. A mulher, apoiada no balcão de atendimento, estendeu uma folha impressa aos plantonistas e sem rodeios expôs:

– Eu quero saber como eu posso usar isto contra ele. Ele diz que não pode nem sair na rua sem esse papel.

Os plantonistas verificaram se tratar de um indulto e perguntaram se a pessoa nominada no documento havia cometido algum crime no momento. Diante da negativa da mulher, pedem que a mesma informe quem seria o indultado. Para surpresa dos dois policiais plantonistas, a mulher respondeu ser seu companheiro. E, questionada sobre a razão de seu companheiro haver sido condenado, manteve a objetividade discorrendo calmamente: – Eu o denunciei porque abusou das minhas duas filhas, e daí ele ficou preso uns dois anos e meio.

– Pois é, senhora, ele já foi preso e recebeu indulto. Se ele não cometeu mais nenhum crime, está encerrado o caso. Mais alguma coisa? – explicou e perguntou um dos plantonistas.

– Então eu quero registrar uma ocorrência. – disse a mulher.

– Mas sobre o que, senhora? – pergunta o policial.

– É que eu estava cuidando dele, e as filhas vieram buscá-lo, e ele quis ir com elas. Ele faz hemodiálise e agora está no hospital. Eu acho que elas não estão cuidando bem da saúde dele.

Os plantonistas entreolharam-se numa comunicação muda sobre a total falta de entendimento da situação.

– Mas, senhora, que filhas? As suas? As que foram abusadas?

– Não, as dele, do casamento. Ele ainda é casado no papel com uma outra mulher. Até ia assinar a separação, mas as filhas o levaram embora. Eu dei treze anos da minha vida a ele, nós temos uma relação estável, e eu dependo do dinheiro dele para viver. Eu tenho muita dó dele, pois ele está doente. Ele ganha uma aposentadoria “boa”, e eu quero os meus direitos. O advogado disse que eu tenho direito, e me mandou registrar na delegacia que as filhas levaram ele.

Intrigado com o relato um dos policiais perguntou:

– E as suas filhas que sofreram abuso, são filhas dele também?

Diante da negativa da mulher o policial plantonista prosseguiu:

– Mas o que lhe importa se ele está sendo bem cuidado ou não? Já contou detalhadamente o caso ao seu advogado? Como pode querer trazer para a sua companhia e, ainda, cuidar de uma pessoa que abusou de suas duas filhas? Imagine o que elas sentem em relação a isso!

Rapidamente a mulher afirmou que as filhas já haviam perdoado o homem pelo mal que causara, e que não relatara maiores detalhes de sua conturbada relação ao advogado. Estupefatos os plantonistas enfatizaram que, antes de qualquer registro de fato, em tese, atípico, uma vez que não existia crime para registrar, ela deveria explicar com detalhes a sua situação ao advogado. Enquanto isso, o homem que a acompanhava, permanecia na mesma posição, inexpressivo, sentado no banco, quando muito fazendo alguns movimentos de concordância com a cabeça.

Agradecendo a orientação, a mulher garantiu que iria cedo da manhã ao advogado. Retirou-se da DP, seguida pelo homem, que aos olhos dos plantonistas mais parecia um espectro a acompanhá-la. Os plantonistas, já exaustos pelo adiantado da hora, ficaram olhando perplexos a saída da dupla.

O absurdo e o inusitado do acontecimento tiveram a propriedade de exterminar qualquer diálogo entre os dois policiais. Um deles apenas disse um fraco “eu vou dormir”. Buscaram suas camas. Dormir um pouco era vital. Não sabiam quando ocorreria o próximo toque de campainha a anunciar, quem sabe, mais um absurdo na madrugada.

Pela manhã, retornou a mulher, seu espectro – que sentou no mesmo local de algumas horas antes – e o advogado, para registrar o fato, em tese, atípico.

Das entrelinhas podemos depreender que o objetivo da mulher era trazer de volta o “companheiro” e sua aposentadoria para junto de si, num primeiro momento, sondando a possibilidade de fazer do indulto um instrumento para coação. Diante da impossibilidade constatada, partiu para a alternativa b: disputar o doente com as filhas do mesmo . E, se mal sucedida em obter o todo, requerer seu quinhão na aposentadoria daquele que ela se empenhou em colocar na prisão. Ela, segundo a própria, cheia de dó do doente; os plantonistas, com a maior cara de ponto de interrogação. Mas, eu só quis dizer.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Prisma.

As primeiras luzes do dia estão por aparecer, acompanhadas do frio e da umidade da estação do ano. O corpo a pedir por mais horas de sono e o compromisso a sacudi-lo. É hora de agir rápido, muito rápido. Agora estamos dentro, no abrigo; agora estamos fora, na viatura, que se desloca veloz pelas ruas ainda cinzentas com os restos da noite. Não é perceptível o tempo do percurso ou a paisagem, somente o silêncio interior. O deslocamento parece ocorrer em um túnel, onde deixamos quem somos ao nele ingressar. O único foco é a operação, o objetivo, sem conjecturas, sem vacilo. Parada brusca, portas da viatura escancaradas, corre-corre, latidos, pé na porta, gritos e o objetivo alcançado. O dia clareou totalmente, a vizinhança acordou, e os cachorros, como por mágica saíram de cena. O dia inicia mais cedo para os moradores da rua e adjacências. Alguns observam o movimento mais timidamente, abrindo apenas pequenas frestas das janelas. Outros abrem todas as janelas e até mesmo saem à rua para ver e se inteirar melhor dos fatos. Vozes emanam de uma precária moradia.
– Eu quero ver, eu quero ver! – insiste a voz infantil.
Uma voz feminina num tom de tolerância ordena: – Deixa ela ver a polícia!
Na janela, com um sorriso de satisfação, apóia-se a menininha, que fica a contemplar a cena. Os vizinhos, motivadores de toda aquela agitação matinal, estão sentados no banco de trás da viatura, fato que, ao olhar infantil, parece lhes conferir importância. Com uma entonação de voz que imprime orgulho à afirmação, a criança pergunta:
– O pai também já foi preso, né, mãe?
A mãe ri e confirma o fato, satisfazendo a filha.
As portas da viatura batem, a sirene estridente soa alto monopolizando a atenção de todos. Fica para trás a menina em sua janela.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Violação e culpa.

O olhar, entre a culpa e a apatia. Ao lado, a mãe, séria, fisionomia endurecida, um toque de irritação denunciado pelos olhos. Em algum lugar, o padrasto, pivô ausente do desconforto.
A cena silenciosa evidencia a inexistência de comunicação, a distância imensurável entre mãe e filha. Naquele momento, um desejo de aconchego materno parece ser o remédio para a dor juvenil, com o poder de unir e mandar para longe a angústia torturante. Traria o conforto e limparia a alma daquela menina de 13 anos, vítima da crua vida. O olhar espelha o desalento diante das privações já vividas, interpostas de forma soberana, e o prenúncio das que fatalmente virão. Seu mundo quase infantil foi violado; a inocência, arrebatada de forma perversa, sem a possibilidade de recusa. Aquele que pôs comida na mesa arrogou a si o direito de posse dela. Aquela que sofreu abuso carrega o peso da culpa pelo banimento do provedor da família. A censura materna é o complemento para a agonia e solidão. Pela fala da mãe, transparece a vaidade ferida e a inconformidade com a perda do pouco existente em sua vida. Para a menina, o pouco veio seguido de um alto preço, cobrado sem perguntas. Ela chegou ao mundo como mera conseqüência e nele seguirá ao acaso, no desconhecimento de como será o dia seguinte.

sábado, 16 de abril de 2011

Gurias das saias pregueadas.

Hoje comemoramos aniversário da Lena. Lá estávamos nós, as gurias. Todas na fase dos “enta”, aproveitando a ocasião para mais um encontro, como outros que já aconteceram depois que nos redescobrimos. Por um momento, olhei o grupo e vi todas em suas saias pregueadas de colégio, blusas brancas e sorrisos marotos. As que não compareceram foram lembradas. Queríamos todas lá. O mais encantador é o fato de não fazermos dos nossos encontros a hora da saudade. Fomos, não somos mais. O passado nos uniu, mas o como somos é que motiva os encontros. Hoje temos nossa realidade presente, com atividades, preocupações e adaptações. Não é apenas bonito; é lindo ver. Mudamos, seguimos nossos caminhos e nos reencontramos para celebrar, não o passado, mas o presente de cada uma, as nossas vidas, o nosso viver. Célia, Jeanne, Lea, Lena, eu e as que não compareceram hoje, histórias de vidas repletas de experiências, ricas em amores, dores, alegrias e muita, mas muita força. Quem de nós é mais sábia? Todas temos a sabedoria e o desconhecimento. Juntas, são visíveis a efervescência da experiência e a ânsia do saber mais, do conhecer. Estar feliz e em paz parece ser a meta diária de todas. A maturidade proporciona o reconhecimento das prioridades. Não nos reunimos para tomar um chá, mas até poderíamos fazê-lo. Seria um chá sem o ranço da idade. Não há cronologia, pois somos todas resolvidas, à nossa maneira e de forma individualizada, tal como a vida determinou. Relembrar seria falar dos amores e desamores da adolescência, das cólicas menstruais, cuja dor fazia chorar mais pela melancolia do rito de passagem para a vida adulta do que pela dor propriamente dita. Coisas de gurias, coisas do nosso tempo de guria. As saias pregueadas, umas mais curtas, outras menos, reportam a uma tentativa mal sucedida de padronização do não padronizável. Todas éramos únicas e agora o somos ainda mais, daí o insucesso da padronização. Sucesso profissional, dinheiro, nada é relevante frente às características pessoais desenvolvidas no tempo. São pessoas, mulheres em reencontro. Cada uma trazendo o que de mais precioso possui. Trazem a si para partilhar com as demais. Que sorte que eu tenho, gurias das saias pregueadas! Um beijo no coração de todas. E eu só quis dizer.

Contato com a dor.

Tantas coisas ocorrem, ao longo dos dias, que os tornam plenos. Deixamos que os acontecimentos fiquem relegados ao esquecimento, mas acredito que, embora isso ocorra, cada momento tem uma força transformadora. Vivemos um instante e, no seguinte, não somos mais os mesmos. A história de vida de cada um é densa, dinâmica e marcante. E quanto mais participamos ou presenciamos as vivências e dores de outros, mais nos acrescemos e nos transformamos também. Outro dia, durante um plantão, fui tomada de surpresa pela entrada de dois policiais militares conduzindo um cidadão. Na verdade, tratava-se de um marido drogado que havia sido interrompido ao tentar espancar a esposa em plena via pública. A fúria e descontrole faziam com que o indivíduo tivesse uma conduta irracional, produzindo lesões até em seus condutores. Aparentava ser uma fera, no sentido animal mesmo. A mulher, a personificação da vítima, coitada, sofrida, repleta de hematomas pelo corpo todo. Um dos seus olhos testemunhava o soco desferido pelo agressor, o outro, as lágrimas que teimavam em escorrer. Perguntar como as coisas chegaram a tal ponto é inútil. Marido usuário de drogas, filhos para manter, trabalho pesado como diarista e tempo só para trabalhar. O cara, não dá para referir de outra forma, um verdadeiro bicho, que, apesar das medidas protetivas, insistia ter a posse da mulher. Ou fica e apanha ou separa e morre. No caso, houve a separação, mas em muitos não há. O dia seguinte, na maioria dos casos, é dia de recomeçar a relação. E de apanhar também. Os filhos ficam em meio ao clima de violência doméstica, assistindo, quando não são espancados. Difícil é ficar neutra em tal circunstância. Em muitos casos, dedico um bom tempo na orientação e consolo da vítima. Gostaria de fazer mais, mas não há o que. O sistema não favorece, apenas oportuniza o contato com a dor, sem possibilidade de expurgá-la.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Polícia por vocação.

Um dia, durante o treinamento, ouvi de um professor a máxima de que ninguém entra em uma Delegacia para dizer como está bem, feliz, ou para perguntar se estamos bem, salvo um amigo em visita de cortesia. É verdade. Costumamos expressar a nossa lida como “só rolo”. Salvo uma ou outra exceção, nossa clientela já vive no “rolo” como prática cotidiana, quer pelas dificuldades financeiras, quer por situações familiares ou de vizinhança. Para muitos, beber e usar outras drogas são hábitos banais, que terminam por incorporar a mesma banalidade no cotidiano dos filhos e dos companheiros. É uma triste constatação. Evidente que o mesmo ocorre nas classes sociais mais favorecidas, porém, para estas, ir à uma Delegacia é o último dos recursos, pois manter as aparências ainda é uma atitude necessária. Furtos, roubos, acidentes de trânsito, são registros necessários, mas, fora estes, já há o temor de ingresso num contexto humilhante. Para estes, sofrer agressões do marido ou da mulher, parece ser levado ao limite do insuportável, em um certo aspecto pelo constrangimento da exposição a terceiros, representados pelos policiais de uma delegacia e, por outro, por haver a associação de delegacia com pobreza, preconceito arraigado há longa data. Por mais que o policial atendente se mantenha neutro, sempre há a dúvida sobre qual é o seu pensamento enquanto registra a ocorrência. Ouvi um jovem policial dizer que o apoio emocional às vítimas não era sua função, pois não era assistente social, mas sim, policial. Penso que, em vista de sua formação acadêmica, realmente ele estava certo, porém, percebo que há um equívoco no entendimento do jovem quanto às suas funções de servidor público. O policial tem que ter, ao natural, a solidariedade, a sensibilidade para perceber a necessidade de sua interferência sempre que a situação assim exigir. Não é uma questão de ser assistente social ou psicólogo, mas de ser muito gente, especialmente vocacionado, para tratar adequadamente quem busca auxílio movido pela necessidade e muitas vezes estando fragilizado. É uma tarefa desgastante, mas necessária. Creio que é mesmo uma questão de vocação. Hoje, no Brasil e em outras partes do mundo, a idéia está voltada para a concretização de uma polícia comunitária e pacificadora. Colocá-la em prática pode se tornar pura utopia se não houver a vocação já referida. Pessoas embrutecidas e impacientes certamente comprometem o processo. Ouso dizer que a imagem da polícia equivale à imagem do policial que registra a ocorrência. Se ele estiver atrás de um balcão, no fim do mundo, registrando ocorrências, até lá, a imagem que ele transmite se confundirá com a da instituição. E, infelizmente, o fator negativo marca muito mais a memória que o positivo. Todos sabemos disso, mas eu só quis dizer.