Estou
em processo de despedida da localidade onde iniciei minha jornada como
policial. Dizer adeus aos colegas, aos colegas amigos e aos meus loucos
queridos da cidade, que fizeram parte dos meus plantões, não é fácil. A
sensação de vazio invade a alma, a incerteza aperta a garganta, de onde quase
sai um pedido de –venham comigo! Ah! Como eu gostaria de não ter que mudar,
embora a mudança seja desejada! Contraditório, não? Pois é, mas lá conheci a
realidade policial e um mundo, como muitas vezes já expressei, diferente
daquele de outras fases da minha vida. Lá vivi momentos muito bons, muitos
risos, assim como muitas angústias, que valeram mais que uma disciplina
acadêmica. A sensação de perda ocorre porque essa acontece mesmo. Encerrar um
período dá essa sensação, pois, seja lá como for, há algo deixado, sem que
jamais possa ser resgatado. Não há resgate quando o retorno evidencia grandes
diferenças. Se eu retornar depois de um período, o que encontrarei? Alguns
terão ido, outros terão vindo, e o cenário terá, também, muitas diferenças. E
tampouco seremos iguais. E tudo faz parte da composição da vida; é assim que
acontece. Início e término de fases, sentimentos para serem avaliados e
expectativas quanto à nova fase; cada coisa em seu tempo e lugar. Quanto aos
sentimento, sempre gosto de frisar que o policial é um dos profissionais que
mais disfarça o que sente, guarda seus sentimentos em um canto, mas deles não
consegue fugir na solidão de uma noite insone. E as marcas ficam espalhadas
pelo rosto, acumulando-se, e muitas vezes sendo expressas por uma fala amarga
sobre os eventos da vida. Percebo isso e luto contra, não quero mudar a minha
forma original, não quero que os demais mudem também. Quero ser a acolhida de
quem necessita, quero ter a palavra terna para quem me procura, quero ser
humana como creio que todos devam ser. Mudei muito, não há como negar. Fiz-me
mais firme, mais resistente e mais controlada, mas meu caráter continua
essencialmente o mesmo, e até o meu mau humor matinal continua sendo interrompido
apenas pelo café-da-manhã. Algumas coisas permanecem: são marcas registradas.
Agora novos caminhos se abrem e eu quero percorrê-los, digo seguramente que o
preciso fazer. Sei que mais tarde encontrarei estes mesmos colegas em algum
lugar qualquer, e haverá muita fraternidade no encontro. Sobre isso preciso
abrir parênteses explicativos.
Trabalhei
muito anos como professora, e os reencontros esporádicos com ex-colegas não
foram de muita fraternidade. Diria que neles havia uma certa frieza, um
distanciamento, salvo naqueles casos em que tivesse ocorrido uma aproximação
maior, ultrapassando o contexto profissional; filhos que conviviam bem, maridos
em clima de camaradagem, convites para jantar reunindo as famílias, eticetera.
Pois bem, entre policiais, há reencontros mais efusivos, salvo alguns casos
pontuais. Ouvindo um colega aqui e lá, percebi que a explicação talvez se funde
no fato de sermos considerados, por muitos, “párias” da sociedade. Somos uma
categoria profissional estigmatizada por atos do passado. As condutas mudaram,
os tempos são outros, mas o estigma permanece. A sociedade recorre a nós de
acordo com a necessidade; mas nos imputa a responsabilidade das mazelas na
segurança. Algumas vezes heróis, algumas vezes algozes, e tantas outras vezes quase
marginais, segundo o entendimento geral. Nos tornamos muito próximos, embora a
família de cada um seja mantida à parte. Creio ser uma forma de apoio e
compreensão “sui generis”. Daí surge a expressão “família Polícia Civil”, num
artifício de indução a crer que não estamos sós. Só polícia entende polícia,
numa estranha relação, que perpassa da competitividade na convivência
diária, à proteção exacerbada em meio ao
tiroteio. Uma relação instigante para estudo em vista da importância no
contexto criado pelos próprios policiais. A Policia Civil que eu conheço é um
bloco único. Independente da lotação somos colegas e solidários. Qualquer
conduta diversa é um desvio. E a origem deste pensamento vincula-se à
existência de uma Academia, de onde saem todos os policiais que lotarão as DPs
do Estado. Desconheço qualquer policial para o qual os tempos de Academia não
tenham sido uma etapa marcante. Piores e melhores momentos de cada um são
narrativas presentes nas conversas entre colegas, independente do tempo decorrido.
É o ponto em comum inicial e, por aí, muito mais haverá. Em cada Delegacia, uma
realidade peculiar, íntima aos que nela trabalham. Há uma riqueza de
experiências em cada um, que o afastamento transforma em perda. Estou perdendo
num lugar e sei que ganharei em outro, pois é sempre assim. Mas eu só quis
dizer.