quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Acústica


Quando comecei a trabalhar na polícia, o chefe do plantão, policial experiente no registro de ocorrências, foi encarregado de treinar os novatos. Eu ficava fazendo os registros, enquanto o colega orientava. Numa das noites, entrou um velhinho do tipo desgastadíssimo, que, se dirigindo a mim, expôs que queria fazer um registro. Não me lembro do fato que o levou até a DP. Pedi sua identidade, ao que ele não atendeu. Repeti o pedido enquanto ele me olhava fixamente. Vendo os movimentos de lábios, explicou que quase não podia me ouvir. Daí teve início um verdadeiro show acústico no interior do plantão:
-O SENHOR TEM AÍ SUA IDENTIDADE?
-Ah, a senhora quer a minha identidade?
-SIM, PODE ME PASSAR SUA IDENTIDADE?
-Entendi. Não tenho.
-ENTÃO ME DIGA O SEU NOME COMPLETO.
-QUAL A SUA DATA DE NASCIMENTO?
Digitados os dados, o sistema apontou um indivíduo que possivelmente seria o velhinho surdo. Para confirmar, perguntei:
-QUAL O NOME DA SUA MÃE?
-Argelina.
-O NOME DA SUA MÃE É ALGELINDA?
Com um meio sorriso, ele respondeu:
-É, Argelina.
Eu, principiante e preocupada em não fazer registro errado, parti para o nome do pai do velhinho.
- O NOME DO SEU PAI É PEDRO? - Dando graças a Deus do progenitor ter um nome comum.
Meio inseguro, confirmou. Imaginei que o senhor Pedro devia ter ido desta para outra há um século, fato que quase o apagara da memória do filho. Resolvi refrescar-lhe a memória.
-O NOME DO SEU PAI É PEDRO E O DA SUA MÃE É ALGELINDA!
O velhinho estampou um meio sorriso e tornou a falar:
- É, Argelina.
Eu ia repetir o nome da mãe novamente, quando fui interrompida pelo plantonista, que, já impaciente, estivera o tempo inteiro ali, naquele plantão do tamanho de um ovo, assistindo a cena e ouvindo o meu exercício vocal. Apressado falou:
-Toca, toca pra frente o registro que é ele mesmo!
Irritada por estar sendo apurada por ele, virei e falei indignada no mesmo tom em que falara com o velhinho:
-MAS EU NÃO POSSO DEIXAR ELE MORRER SEM SABER DIZER O NOME DA MÃE DELE!!!!
Dei-me conta de que minha voz ecoara, e que até o velhinho surdo ouvira a exclamação.
O momento seguinte foi de silêncio absoluto, logo seguido da risada do plantonista.
Não saberia descrever o tamanho do meu constrangimento. Coisa de principiante, mas eu só quis dizer.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Resgatando o afeto


Entrei e olhei os rostos, procurando algum que me fosse familiar. Escolhi uma mesa de onde eu pudesse observar a porta. Lentamente puxei a cadeira, sentei e, de imediato, comecei a remexer no conteúdo da minha bolsa, buscando, naquele mar caótico, uma caneta. Se tivesse que esperar, precisaria me ocupar, quem sabe, escrevendo algumas linhas, para aproveitá-las em um texto novo. Nada de caneta, incrível! Desisti e comecei a olhar o cardápio que o garçom trouxera na minha chegada. As gurias logo chegariam! E o Claudio, será que viria também? Eu estava ali, inquieta como uma adolescente. Na verdade, naquele momento, eu era uma adolescente, pois meus pensamentos estavam voltados aos meus treze ou quatorze anos – tempo de ginásio. Sempre fico assim quando vou ao encontro dos colegas da adolescência. É como se abrisse uma janela no tempo e esta me permitisse retomar a leveza da juventude. Entrava um, entrava outro e nada de aparecerem. Olhei as horas e constatei estar havia cinco minutos ali. Mas que cinco minutos longos! Novamente, a porta se abriu e vi o Claudio. Um misto de alegria e serenidade tomou conta de mim. Quarenta anos se passaram desde a última vez em que nos vimos. Como explicar a insignificância desse tempo, em relação aos cinco minutos anteriormente esperados? Senti a alegria do reencontro, e a sensação de que há pouco estávamos sentados no muro do colégio, conversando durante o recreio. O reencontro desfez o espaço temporal, trazendo aquele sentimento de amizade e proximidade. Saudade? Acho que é só uma palavra que usamos por não sabermos expressar o que realmente sentimos. Penso ser familiaridade, quando nos sentimos tão próximos e à vontade, num reencontro após quarenta anos. O abraço, caloroso, cheio de “Claudio”. É, sempre foi assim, muito Claudio, como só ele sabia ser, e percebo que ainda sabe. Sentados frente-a-frente, comecei a falar, numa urgência de contar as últimas novidades da minha vida, como se ele soubesse alguma coisa dela. Como se houvéssemos conversado no dia anterior. Sobre a expressão “falar pelos cotovelos”, fui à exemplificação na medida exata. Tinha tanto para dizer, que realmente precisaria de cotovelos falantes. Mudamos em muitos aspectos. Vivemos nossas vidas na mesma cidade, sem um dia sequer termos nos encontrado. Cada um cuidando da própria vida, dos seus amores e seguindo sua caminhada. Envelhecemos, evidentemente. As indisfarçáveis marcas do tempo estavam presentes nos nossos rostos, mas ainda éramos nós, Claudio e Silvia, sentados no muro do colégio, rindo e conversando; ele, mais a observar. Esses momentos me fazem sentir como a vida é boa. Pequenas frações de tempo renovam, pela alegria que proporcionam. Minha tagarelice foi interrompida pela chegada da Lea e da Jeanne. Como não ficar feliz naquele momento? Posso dizer que estarmos ali era um presente. O meu dia havia sido difícil, com frustrações relacionadas ao trabalho, as quais ficaram esquecidas. A Jeanne, que fazia muito não via o Claudio, passou de imediato a indagá-lo, alegando que tinha que aproveitar a oportunidade para se atualizar sobre a vida dele, saber dos filhos, casamento, eticétera, eticétera. Foi divertido assistir! A Lea já estava mais inteirada, pois sempre manteve contato ao longo dos anos. Mas o Claudio tinha um compromisso e precisava ir embora. Nos despedimos, então. Lamentei, mas não fiquei triste. Ele iria se ausentar da minha vida por um espaço de tempo indeterminado, porém, insignificante a partir do momento em que nos reencontrássemos, tal como ocorrera com os quarenta anos. Percebi que, em qualquer tempo, ele continuaria sendo muito “Claudio”. Ele estava bem, isso é o que importava. Sozinhas, eu, Jeanne e Lea recomeçamos nossa conversa, que ainda se estendeu por algumas horas, insuficientes para tanto o que falar. Combinamos novo encontro para breve. Levantamos e lentamente saímos pela porta, como meninas com saias de preguinhas em tempo de colégio; a alma renovada pela certeza da vitória no desafio do tempo. No caminho para casa, pensei muito neles e no quanto vê-los me fizera bem. Realmente não é saudade. É uma retomada do afeto, sem resgate do passado; simplesmente assim. Somos o que somos no presente, e do passado só queremos o afeto que  não se extinguiu; se renova a cada encontro. Antes que o tempo me vença é melhor comunicar: - Claudio, Jeanne e Lea, que bom que estão na minha vida! Amo vocês! Mas eu só quis dizer.