Quando comecei a trabalhar na
polícia, o chefe do plantão, policial experiente no registro de ocorrências,
foi encarregado de treinar os novatos. Eu ficava fazendo os registros, enquanto
o colega orientava. Numa das noites, entrou um velhinho do tipo desgastadíssimo,
que, se dirigindo a mim, expôs que queria fazer um registro. Não me lembro do
fato que o levou até a DP. Pedi sua identidade, ao que ele não atendeu. Repeti
o pedido enquanto ele me olhava fixamente. Vendo os movimentos de lábios,
explicou que quase não podia me ouvir. Daí teve início um verdadeiro show
acústico no interior do plantão:
-O SENHOR TEM AÍ SUA IDENTIDADE?
-Ah, a senhora quer a minha
identidade?
-SIM, PODE ME PASSAR SUA
IDENTIDADE?
-Entendi. Não tenho.
-ENTÃO ME DIGA O SEU NOME COMPLETO.
-QUAL A SUA DATA DE NASCIMENTO?
Digitados os dados, o sistema
apontou um indivíduo que possivelmente seria o velhinho surdo. Para confirmar,
perguntei:
-QUAL O NOME DA SUA MÃE?
-Argelina.
-O NOME DA SUA MÃE É ALGELINDA?
Com um meio sorriso, ele respondeu:
-É, Argelina.
Eu, principiante e preocupada em
não fazer registro errado, parti para o nome do pai do velhinho.
- O NOME DO SEU PAI É PEDRO? -
Dando graças a Deus do progenitor ter um nome comum.
Meio inseguro, confirmou.
Imaginei que o senhor Pedro devia ter ido desta para outra há um século, fato
que quase o apagara da memória do filho. Resolvi refrescar-lhe a memória.
-O NOME DO SEU PAI É PEDRO E O DA
SUA MÃE É ALGELINDA!
O velhinho estampou um meio
sorriso e tornou a falar:
- É, Argelina.
Eu ia repetir o nome da mãe
novamente, quando fui interrompida pelo plantonista, que, já impaciente,
estivera o tempo inteiro ali, naquele plantão do tamanho de um ovo, assistindo
a cena e ouvindo o meu exercício vocal. Apressado falou:
-Toca, toca pra frente o registro
que é ele mesmo!
Irritada por estar sendo apurada
por ele, virei e falei indignada no mesmo tom em que falara com o velhinho:
-MAS EU NÃO POSSO DEIXAR ELE
MORRER SEM SABER DIZER O NOME DA MÃE DELE!!!!
Dei-me conta de que minha voz
ecoara, e que até o velhinho surdo ouvira a exclamação.
O momento seguinte foi de
silêncio absoluto, logo seguido da risada do plantonista.
Não saberia descrever o tamanho
do meu constrangimento. Coisa de principiante, mas eu só quis dizer.