quinta-feira, 21 de abril de 2011

Violação e culpa.

O olhar, entre a culpa e a apatia. Ao lado, a mãe, séria, fisionomia endurecida, um toque de irritação denunciado pelos olhos. Em algum lugar, o padrasto, pivô ausente do desconforto.
A cena silenciosa evidencia a inexistência de comunicação, a distância imensurável entre mãe e filha. Naquele momento, um desejo de aconchego materno parece ser o remédio para a dor juvenil, com o poder de unir e mandar para longe a angústia torturante. Traria o conforto e limparia a alma daquela menina de 13 anos, vítima da crua vida. O olhar espelha o desalento diante das privações já vividas, interpostas de forma soberana, e o prenúncio das que fatalmente virão. Seu mundo quase infantil foi violado; a inocência, arrebatada de forma perversa, sem a possibilidade de recusa. Aquele que pôs comida na mesa arrogou a si o direito de posse dela. Aquela que sofreu abuso carrega o peso da culpa pelo banimento do provedor da família. A censura materna é o complemento para a agonia e solidão. Pela fala da mãe, transparece a vaidade ferida e a inconformidade com a perda do pouco existente em sua vida. Para a menina, o pouco veio seguido de um alto preço, cobrado sem perguntas. Ela chegou ao mundo como mera conseqüência e nele seguirá ao acaso, no desconhecimento de como será o dia seguinte.

sábado, 16 de abril de 2011

Gurias das saias pregueadas.

Hoje comemoramos aniversário da Lena. Lá estávamos nós, as gurias. Todas na fase dos “enta”, aproveitando a ocasião para mais um encontro, como outros que já aconteceram depois que nos redescobrimos. Por um momento, olhei o grupo e vi todas em suas saias pregueadas de colégio, blusas brancas e sorrisos marotos. As que não compareceram foram lembradas. Queríamos todas lá. O mais encantador é o fato de não fazermos dos nossos encontros a hora da saudade. Fomos, não somos mais. O passado nos uniu, mas o como somos é que motiva os encontros. Hoje temos nossa realidade presente, com atividades, preocupações e adaptações. Não é apenas bonito; é lindo ver. Mudamos, seguimos nossos caminhos e nos reencontramos para celebrar, não o passado, mas o presente de cada uma, as nossas vidas, o nosso viver. Célia, Jeanne, Lea, Lena, eu e as que não compareceram hoje, histórias de vidas repletas de experiências, ricas em amores, dores, alegrias e muita, mas muita força. Quem de nós é mais sábia? Todas temos a sabedoria e o desconhecimento. Juntas, são visíveis a efervescência da experiência e a ânsia do saber mais, do conhecer. Estar feliz e em paz parece ser a meta diária de todas. A maturidade proporciona o reconhecimento das prioridades. Não nos reunimos para tomar um chá, mas até poderíamos fazê-lo. Seria um chá sem o ranço da idade. Não há cronologia, pois somos todas resolvidas, à nossa maneira e de forma individualizada, tal como a vida determinou. Relembrar seria falar dos amores e desamores da adolescência, das cólicas menstruais, cuja dor fazia chorar mais pela melancolia do rito de passagem para a vida adulta do que pela dor propriamente dita. Coisas de gurias, coisas do nosso tempo de guria. As saias pregueadas, umas mais curtas, outras menos, reportam a uma tentativa mal sucedida de padronização do não padronizável. Todas éramos únicas e agora o somos ainda mais, daí o insucesso da padronização. Sucesso profissional, dinheiro, nada é relevante frente às características pessoais desenvolvidas no tempo. São pessoas, mulheres em reencontro. Cada uma trazendo o que de mais precioso possui. Trazem a si para partilhar com as demais. Que sorte que eu tenho, gurias das saias pregueadas! Um beijo no coração de todas. E eu só quis dizer.

Contato com a dor.

Tantas coisas ocorrem, ao longo dos dias, que os tornam plenos. Deixamos que os acontecimentos fiquem relegados ao esquecimento, mas acredito que, embora isso ocorra, cada momento tem uma força transformadora. Vivemos um instante e, no seguinte, não somos mais os mesmos. A história de vida de cada um é densa, dinâmica e marcante. E quanto mais participamos ou presenciamos as vivências e dores de outros, mais nos acrescemos e nos transformamos também. Outro dia, durante um plantão, fui tomada de surpresa pela entrada de dois policiais militares conduzindo um cidadão. Na verdade, tratava-se de um marido drogado que havia sido interrompido ao tentar espancar a esposa em plena via pública. A fúria e descontrole faziam com que o indivíduo tivesse uma conduta irracional, produzindo lesões até em seus condutores. Aparentava ser uma fera, no sentido animal mesmo. A mulher, a personificação da vítima, coitada, sofrida, repleta de hematomas pelo corpo todo. Um dos seus olhos testemunhava o soco desferido pelo agressor, o outro, as lágrimas que teimavam em escorrer. Perguntar como as coisas chegaram a tal ponto é inútil. Marido usuário de drogas, filhos para manter, trabalho pesado como diarista e tempo só para trabalhar. O cara, não dá para referir de outra forma, um verdadeiro bicho, que, apesar das medidas protetivas, insistia ter a posse da mulher. Ou fica e apanha ou separa e morre. No caso, houve a separação, mas em muitos não há. O dia seguinte, na maioria dos casos, é dia de recomeçar a relação. E de apanhar também. Os filhos ficam em meio ao clima de violência doméstica, assistindo, quando não são espancados. Difícil é ficar neutra em tal circunstância. Em muitos casos, dedico um bom tempo na orientação e consolo da vítima. Gostaria de fazer mais, mas não há o que. O sistema não favorece, apenas oportuniza o contato com a dor, sem possibilidade de expurgá-la.