segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Voar é para os pássaros, mas eu também quero.


Voar é para os pássaros, mas o homem, louco de inveja e sedento de adrenalina resolveu arranjar um meio de realizar a proeza. Eu, como gosto de deslocamentos rápidos, nada posso fazer senão aderir. Mas, cá entre nós, não espalhem, não consigo ficar confortável dentro daquele trambolho com asas. Confesso que, se adiantasse, embarcaria vestida com roupa de mergulho completa, (incluindo cilindro de oxigênio e pés de pato) e paraquedas, pronta para qualquer eventualidade. Mas, segundo um amigo piloto, não é solução. Resta desistir da ideia, relutante, muxoxeando como criança e, enfrentar. É que sinto uma certa insegurança, em vista da distância do solo. Nas alturas as nuvens são lindas, o relevo distante, tão cheio de altos e baixos, torna-se minúsculo e o oceano parece uma película brilhante. Tudo parece composto de serenidade, menos os meus pensamentos, que insistem em questionar o que a falta de opção deveria vetar por ser inquestionável. Será que o piloto dormiu bem antes do voo? Será que pilota tão bem quanto eu dirijo? Bah, daí a coisa fica complicada e resolvo ler, sem sair da mesma linha por dez minutos. Foi mais ou menos assim o meu retorno do Rio. Voo atrasado sem explicações seguido de um ritual moroso entre acomodação de sacolinhas, bolsas e distribuição de balinhas. O piloto com voz sensual comunicou um defeito na ventilação, já sanado, o que foi confirmado pelo cheiro de óleo ou plástico que começou a exalar junto com o vapor que saia pelo duto. É incrível como as pessoas fazem cara de paisagem diante de situações duvidosas! Entendi a razão de não deixarem embarcar com artefatos do tipo machados, martelos e outros, pois pensei que seria bom ter um deles para quebrar o vidro e deixar entrar ar de verdade por aquele buraco, que imagina-se ser uma janela. Depois de muito anda e para na pista, o urubu subiu! Cruzes! Mais ou menos na metade do percurso, cansada de tanta reza forte, novamente ouvi o piloto, ou o comissário, dizer para ficarmos sentados com os cintos, pois estávamos atravessando uma área de turbulência. Eu senti um forte ímpeto de levantar e gritar-vai à merda e dirige esta porcaria direito, motorista!-mas evidentemente mantive a cara de paisagem padrão, comum no avião.
No final das contas, nem sacudiu muito. Foi só um 1º de Abril aplicado pelo piloto em pleno mês de fevereiro. Pousamos em Porto Alegre, para minha alegria, com a destreza de um pelicano, e todos os passageiros com cara de paisagem. Foi mais ou menos assim, sem contar o duelo entre o comissário e uma velhinha. Bem, não sou um pássaro, e sofro da inveja original dos humanos querendo voar também. Deve ser também uma ponta de masoquismo da minha parte, disfarçada de senso prático, mas que deixo para analisar em outra vida, pois nesta estou ocupada planejando o próximo voo. Mas eu só quis dizer.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

O portão do inferno.

Foi meu primeiro plantão como policial em dia de carnaval. Até certo horário tudo correu normalmente, apenas podia-se ver e ouvir os foliões passando em frente a DP, rumo ao local das costumeiras festas. Uns rindo e conversando, outros já trôpegos, diria já prontos, no estado que julgavam ser o ideal para “aproveitar” a noite. Homens, mulheres, rapazes, meninas, alguns, frequentadores da delegacia, outros, nem tanto, enfim, todos escoando em direção à praia. Ouvia-se muita música ao longe, entremeada pelo som extremo que partia dos veículos em circulação. Parecia um prenúncio de guerra. Deus, que saudade da minha casa! Assim permaneceu, como se toda aquela gente estivesse reunindo-se, acumulando-se, até o limite insustentável. Madrugada alta ouviu-se o som da campainha sendo tocada insistentemente, seguido de fortes batidas na grade de ferro, que fechada com um forte cadeado, impedia o acesso direto à porta da DP( abençoada grade!). Corremos para verificar o que estava acontecendo, antevendo alguma tragédia do tipo perseguição, homicídio, estupro, sei lá o que passou em nossas cabeças. Só sei que o prognóstico não era dos melhores. Ao abrirmos a porta ficamos estarrecidos com a multidão que forçava o portão tentando abri-lo. De imediato todos começaram a falar aos gritos, uns tentando sobrepor as vozes dos outros, numa gritaria impossível de entender. O plantonista, mais experiente que nós, volantes em início de carreira, gritou com a multidão, tentando colocar ordem e entender o motivo daquele tumulto. Apesar do ar livre, sentia-se o cheiro do álcool que recendia daquele conjunto. Cada pessoa parecia ter um motivo diferente para procurar a polícia. Ouvia-se sobre socos, pontapés, direitos a proteção, carteira que pegaram, um deu em cima da mulher do outro e uma coletânea de impropérios dirigidos a nós por não abrirmos o portão para que ingressassem na delegacia. Aquele portão parecia que nos separava do inferno, de Sodoma e Gomorra, ou algo do gênero. A primeira coisa que pensei é que o xadrez era pequeno para tantos e éramos somente três policiais. Fazer o quê com aquele bando de loucos alcoolizados? Percebendo a falta de possibilidade de continuarem a noite tumultuando na delegacia, o bando começou a dispersar aos poucos, pois além de não receberem o menor acolhimento de nossa parte, ouviram que seriam presos por vandalismo.  
Poucos restaram, entre eles aquele que provavelmente incitara o grupo. Gritava o próprio nome com a língua enrolada, dizendo que podiam prendê-lo e não esclarecia a razão de sua presença. Apenas repetia o seu suposto nome e gesticulava, sacudia o portão e enfiava os braços entre as barras de ferro, como se quisesse passar por entre elas. Apoiada nas grades estava uma mulher com aparente idade de 50 anos, cabelos descoloridos, maquiagem fortíssima já meio escorrida, com uma sombra azul quase anil colorindo as pálpebras, e um vestido curtinho, rodado, semelhante ao de colombina. Perguntei o que desejava. Respondeu que seu companheiro havia sumido. Evidente que eu quis saber se ela já havia ligado para casa, para verificar se ele não teria ido embora da festa para dormir. Ela prontamente explicou que não moravam juntos, que se conheceram na festa e depois ele sumira. Ela queria uma providência da polícia, que fosse realizada uma busca para encontrá-lo. Não preciso dizer que o nível de álcool no sangue da colombina devia estar altíssimo, julgando-se pelo cheiro que a envolvia e por suas pálpebras que teimavam em querer fechar. Não foi muito difícil convencê-la de que era melhor esperar pelo companheiro perdido em casa. Lentamente e com dificuldade para acertar os passos a colombina seguiu pela calçada, indo, talvez, para casa, ou em busca do pierrô sumido ou de um arlequim desgarrado, quem sabe. O portão permaneceu fechado, impedindo que o inferno invadisse a DP, pois já bastam os momentos em que isso ocorre, não raras vezes, por necessidade premente.    

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Olhos verdes.




Saímos para cumprir um mandado. A tarde estava abafada e úmida. Chegamos ao casebre, e um homem velho nos atendeu. No interior, numa cama de casal, duas mulheres que dormiam despertaram ao entrarmos. O ar naquele lugar era irrespirável. A distância entre as tábuas do chão permitia ver que logo abaixo havia um solo úmido, de onde exalava cheiro de esgoto. As buscas iniciaram percorrendo os cantos do cubículo destinado à cozinha. Sobre o fogão havia panelas com restos de comida do almoço, fermentando com o calor e atraindo a presença de moscas. O Velho tossia muito, assim como uma das mulheres, segundo eles, em razão de asma. Mais provável uma tuberculose, em vista da desnutrição. Nós, ali, respirando o mesmo ar viciado e saturado pelo mau cheiro. O esgoto da casa corria para uma vala rasa, que transbordara durante as fortes chuvas que caíram na região. Por isso, o terreno ficara coberto por uma fina camada de excrementos  fluidificados. Era difícil a revista do local; era nojento mexer em qualquer coisa lá. Em seguida chegaram três crianças, filhos de uma das mulheres. Um dos pequenos começou a chorar, assustado com a nossa presença. A mãe mandou que sentassem em um degrau. Abaixei para conversar com eles, tentar acalmá-los. Deparei com  três lindos pares de olhos verdes a me fitar, com a inocência peculiar das crianças, vivam onde viverem. Ali era a casa delas. Sobre o fogão, a comida em fermentação que comeriam. Aquela mãe que tossia era o único porto seguro que conheciam. Estavam brincando na margem do rio, quando alguém avisou que fossem para casa; e para lá correram, sem entender o que acontecia. Passado o susto inicial, logo já estavam à vontade, apesar da nossa presença, encantados com a viatura. Receberam alguma atenção nossa e foram acalmando. Dava para perceber que aquelas crianças haviam tocado o coração de cada um de nós, embora não pudéssemos demonstrar abertamente. Resolvemos ir embora, pois nada havia ali. Porta fria, mas o coração febril, apertado. Da viatura olhei novamente para as três e só pude pensar onde estava Deus. Vida de polícia.... Alguém quer experimentar?