Subitamente entra no plantão Vera
querida, acompanhada por dois brigadianos que conduziam o Romeu drogado.
Inconformado, este exclamava seu amor pela cabeleireira, tal como acontecera
alguns dias antes. Um único pensamento passou por minha cabeça: -De novo!!! A
violação das medidas protetivas levou o casal até nós, num curto espaço de
tempo. Os colegas da BM explicaram brevemente o que havia ocorrido. Sendo hora
do almoço, o plantonista dera uma rápida saída, aliás, como os demais da DP.
Apenas eu, um colega da Volante e Deus estávamos no prédio. Eu dizia tantos “ai
meu Deus”, que, suponho, Ele desceu do céu para o plantão. Os PMs foram chamados para outra ocorrência, saíram para retornar mais tarde. A cabeleireira foi em busca de algum alimento. Ali permanecemos
com o Romeu choroso, que imediatamente anunciou que poria fim a própria vida. Deixamos que fizesse sua cena, apenas observando o protagonista, até ele
começar a bater com a cabeça na parede. Meu
colega tentou fazê-lo parar, advertindo-o sobre os ferimentos, eticetera,
eticetera, e nada, a gritaria continuou, acompanhada das cabeçadas. A
possibilidade do sujeito ficar com lesões nos deixou preocupados. Sabíamos da
nossa responsabilidade pela integridade física do preso. Preocupava-nos a possibilidade do preso adquirir lesões sob a nossa custódia e, também, por estarmos os dois
em estágio probatório. Bateu a insegurança. As pessoas passavam na calçada e
espiavam pelas janelas da delegacia. Os gritos aguçavam a curiosidade dos
passantes. Meu colega pediu que eu segurasse o Romeu, enquanto telefonava solicitando
o retorno da PM. Cruzei as mãos atrás do pescoço do homem autolesivo e passei a
puxá-lo para frente, para impedir que sua cabeça batesse na parede. Da janela, as pessoas me viam puxar a criatura em minha direção e ele
a gritar. Eu suava muito com o esforço e estava bastante tensa por participar
daquela cena, no mínimo, estranha. Não podíamos pedir ajuda aos transeuntes!
Ficaria na história da pequena cidade o pedido de socorro da polícia aos
cidadãos. Comecei a ficar preocupada com o ridículo da situação; a platéia, que
agora era minha e dele, poderia interpretar que eu assediava o preso, e que ele
gritava por não aceitar o assédio. Finalmente meu colega terminou os telefonema. Pude, então, interromper aquela ridicularia. Busquei algo para amortecer as cabeçadas. Abençoado Código Penal! Funcionou, graças ao bom Deus! O
plantonista retornou, para nosso alívio, e junto chegaram os PMs, fato que
modificou a conduta do Romeu tornando-se muito calmo. Hoje, ao lembrar o episódio, percebo que a minha
inexperiência, assim como a do colega, certamente deram asas ao abuso de
paciência por parte daquela criatura, que encenou o tempo inteiro, deixando-nos
em estado total de exaustão. Iniciado o registro da ocorrência, ficamos sabendo
que nosso preso escandaloso tinha um histórico de muitas confusões, não
trabalhava e vivia às custas da cabeleireira viúva. Dela provinha o dinheiro
para as drogas. Estava com 29 anos de idade, e Vera querida com 53. Pelo que
pude apurar, ela recebia uma pensão em razão da viuvez. Pode parecer pouco, mas
é comum, em grupos menos favorecidos, uma mãe que recebe bolsa família por dois
ou três filhos virar alvo de parasitas de tipos como o Romeu. Pois é, o nosso “herói”
tinha razões para espernear. A perda da galinha dos ovos de ouro, certamente, o
deixava muito preocupado. Vera querida agora se comportava como uma mãe
austera, ameaçando abandoná-lo, sem dinheiro para suas “pedrinhas”. Pensam que
terminou por aí? Não! Apesar das afirmativas contrárias, a cabeleireira voltou
ao convívio de seu amado que, embora fosse um estorvo, a fazia sentir-se invejada
em razão de ser um companheiro tão jovem. Soubemos da reconciliação quando, duas semanas
mais tarde, ela retornou à delegacia acompanhada do irmão, da cunhada e de uma
sobrinha, os quatro se dizendo ameaçados de morte pelo Romeu drogado. Ela
evitava olhar em minha direção. Dava para perceber que Vera querida sabia haver
esgotado a cota de paciência de todos os presentes, particularmente, a minha,
uma vez que eu já me expressara de forma bastante clara sobre aquele circo que
o casal formava com seus desentendimentos. O abençoado celular da Volante tocou chamando
para um trabalho externo, o que teve o valor de um presente para mim. Pensei:
-Adeus, Vera querida! De preferência, até nunca mais!!! Mas eu só quis dizer.
quarta-feira, 28 de dezembro de 2011
sexta-feira, 23 de dezembro de 2011
O Romeu drogado ou Vera querida, eu “chi” amo! Parte 1
Como já havia ocorrido em outras ocasiões, ela entrou na DP
para ser protegida do atual companheiro. Eu ignorava a habitualidade das brigas
travadas pelo casal. Estava iniciando minha carreira policial e, conseqüentemente,
ansiosa por ação. As queixas da mulher me deixaram indignada. Pobre mulher! pensava eu. O companheiro era
usuário de drogas, facão, ameaças, e ela estava impossibilitada de buscar suas
roupas na casa que, até aquele momento, havia sido seu lar. Relatou que tinha medo, enfim,
mil mazelas, mas sem lágrimas. Na ocasião trabalhavam dois delegados
na DP, ambos recém formados e igualmente ávidos por atuar. Em matéria de
experiência na lida com a clientela de uma Delegacia, eles, assim como nós da
Volante, eram totalmente"verdes". Imediatamente ficou determinado que a
mulher, dita cabeleireira, seria levada à casa onde estavam seus pertences, para
retirá-los sob nossa proteção. Era uma época chuvosa e, ao saber da missão, um
colega veterano e morador da cidade alertou para o barro que iríamos encontrar
na estrada. Outro agente, novato também, ao escutar a observação do veterano, e contrariando
o costumeiro, prontamente me passou a chave da viatura para que eu dirigisse – a
gente nunca escapa de ter um metido a esperto entre os colegas. Assumi a direção, e digo para quem não sabe, que com mulher polícia, nem o diabo pode! Saímos em direção
ao tal local, levando junto a cabeleireira, seguidos por outro veículo, no qual
estavam os dois delegados. Dizer que fomos para uma estrada embarrada me parece
muito pouco. Era uma meleca só durante todo o caminho, com a viatura rabeando a cada momento. Confesso que jamais havia dirigido no barro. A mulher indicava o
caminho na base dos “dobra aqui e é logo ali”, intermináveis. Chegamos ao local
finalmente; hora de enfrentar a fera drogada. Visualizamos um sujeito na
soleira da porta. Quando avistou quatro policiais com armas na mão, a criatura
passou a choramingar, chamando pela mulher numa cena lamentável. Colocamos uma
cadeira no lado de fora do barraco e algemamos a ela o “perigoso”, para que não
corresse atrás da protegida. Ele só fazia prantear a ingratidão da cabeleireira
que estava por abandoná-lo. Reunidos em trouxas os pertences, saímos em
disparada após soltar o homem, que ainda tentou correr atrás dos carros, tal
como faria um cão querendo alcançar seu dono. A propósito, o nome da mulher era
Vera. Em suas exclamações chorosas com características de estado de embriaguez,
ele lamentava: -Vera, querida, eu “chi” amo! Por que isso, Vera!? Não vai
embora, meu amor!
Na operação resgate dos pertences da vítima, dava para
perceber um certo ar de travessura em nós, policiais. Verdinhos,verdinhos! Havíamos
conseguido fugir do Romeu drogado, embora a persistência dele, por instantes,
até nos tenha feito imaginar o contrário.
Voltamos para a DP com os veículos cobertos de barro, jurando que o
episódio estava encerrado. Só que não! Mas eu só quis dizer.
segunda-feira, 19 de dezembro de 2011
Entre a surra e a Ritalina
Numa tarde de plantão, entrou na DP uma mulher acompanhada
de um adolescente magrinho, de ar cansado. Não há erro, não, cansado era o
jovenzinho. Logo, eu e meu colega verificamos tratar-se de mãe e filho. O menino
sentou, apoiando os cotovelos sobre os joelhos, deixando que as mãos
sustentassem o peso de sua cabeça. A mãe estava ali para registrar uma
ocorrência. Contou que seus dois filhos eram doentes e tinham problemas,
tomavam remédios receitados pelo “siquiatra”. Que dois indivíduos haviam ido a
sua casa e oferecido trabalhos de cura espiritual, ou coisa que o valha, para
resolver os problemas de saúde dos meninos. Para isso, cobraram a quantia de um
mil e quatrocentos reais. Como o tal tratamento não surtiu efeito, na visita seguinte
dos indivíduos ela reclamou. Os mesmos pediram mais setecentos reais para que o
tratamento fosse concretizado com garantia de cura. Negou-se a pagar, dizendo
que não queria mais saber de gastar dinheiro com um tratamento caro e que não
apresentara qualquer resultado até o momento. Os indivíduos, provavelmente
vendo a possibilidade de lucro frustrada, no dia seguinte esperaram pelo
jovenzinho em seu percurso da escola para casa e lhe aplicaram uma surra
“curativa”, quem sabe uma tentativa de exorcismo. A mãe ficou horrorizada ao
saber da atitude dos supostos curandeiros. Depois do registro, arrisquei
perguntar qual medicamento o guri tomava. Ela informou que o “siquiatra” havia
receitado Ritalina. Perguntei se o menino era hiperativo. Saindo do estado de
mutismo absoluto em que se encontrava desde sua entrada na DP, o menino, branco
como uma vela, levantou a cabeça e respondeu num tom que beirava a irritação:
-Eu não sou hiperativo, eu só não consigo dormir!
Diante disso, pensei comigo que nem a surra de exorcismo
poderia superar os efeitos da Ritalina mal dosada e administrada diariamente.
Eu e o colega aconselhamos que a mulher procurasse o médico, pois o remédio que
este havia receitado poderia não estar fazendo o efeito necessário, eticetera e
tal. Ela disse que provavelmente procuraria um médico de outra cidade, mesmo
que fosse preciso pagar a consulta, pois não havia outro “siquiatra” na cidade em
que ela residia, que era muito difícil conseguir uma consulta com o único existente.
Apoiei a decisão, pois quem gastou com curandeirismo, certamente poderia pagar
por uma consulta e dar a chance de o menino dormir como qualquer pessoa
precisa. A mulher agradeceu o atendimento e a orientação e saiu, seguida pelo
adolescente insone. Perguntei ao meu colega até quando eu poderia sobreviver
naquele mar de absurdos, sem procurar um “siquiatra”. Rimos e prosseguimos na
nossa rotina nada rotineira, onde tomamos conhecimento de situações inusitadas,
sobre as quais, embora tomados de surpresa, precisamos encontrar palavras de
orientação e conforto. O povo simples, sem cultura, fica a mercê de curandeiros
e de médicos que receitam mas não acompanham os resultados de suas receitas (por
razões que não cabem ponderar no
momento); sofre desnecessariamente em consequência da falta de princípios, das
falhas do sistema de saúde e da ignorância. E o rapazinho insone, fica entre a
surra e a Ritalina. Mas eu só quis dizer.
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