Numa tarde de plantão, entrou na DP uma mulher acompanhada
de um adolescente magrinho, de ar cansado. Não há erro, não, cansado era o
jovenzinho. Logo, eu e meu colega verificamos tratar-se de mãe e filho. O menino
sentou, apoiando os cotovelos sobre os joelhos, deixando que as mãos
sustentassem o peso de sua cabeça. A mãe estava ali para registrar uma
ocorrência. Contou que seus dois filhos eram doentes e tinham problemas,
tomavam remédios receitados pelo “siquiatra”. Que dois indivíduos haviam ido a
sua casa e oferecido trabalhos de cura espiritual, ou coisa que o valha, para
resolver os problemas de saúde dos meninos. Para isso, cobraram a quantia de um
mil e quatrocentos reais. Como o tal tratamento não surtiu efeito, na visita seguinte
dos indivíduos ela reclamou. Os mesmos pediram mais setecentos reais para que o
tratamento fosse concretizado com garantia de cura. Negou-se a pagar, dizendo
que não queria mais saber de gastar dinheiro com um tratamento caro e que não
apresentara qualquer resultado até o momento. Os indivíduos, provavelmente
vendo a possibilidade de lucro frustrada, no dia seguinte esperaram pelo
jovenzinho em seu percurso da escola para casa e lhe aplicaram uma surra
“curativa”, quem sabe uma tentativa de exorcismo. A mãe ficou horrorizada ao
saber da atitude dos supostos curandeiros. Depois do registro, arrisquei
perguntar qual medicamento o guri tomava. Ela informou que o “siquiatra” havia
receitado Ritalina. Perguntei se o menino era hiperativo. Saindo do estado de
mutismo absoluto em que se encontrava desde sua entrada na DP, o menino, branco
como uma vela, levantou a cabeça e respondeu num tom que beirava a irritação:
-Eu não sou hiperativo, eu só não consigo dormir!
Diante disso, pensei comigo que nem a surra de exorcismo
poderia superar os efeitos da Ritalina mal dosada e administrada diariamente.
Eu e o colega aconselhamos que a mulher procurasse o médico, pois o remédio que
este havia receitado poderia não estar fazendo o efeito necessário, eticetera e
tal. Ela disse que provavelmente procuraria um médico de outra cidade, mesmo
que fosse preciso pagar a consulta, pois não havia outro “siquiatra” na cidade em
que ela residia, que era muito difícil conseguir uma consulta com o único existente.
Apoiei a decisão, pois quem gastou com curandeirismo, certamente poderia pagar
por uma consulta e dar a chance de o menino dormir como qualquer pessoa
precisa. A mulher agradeceu o atendimento e a orientação e saiu, seguida pelo
adolescente insone. Perguntei ao meu colega até quando eu poderia sobreviver
naquele mar de absurdos, sem procurar um “siquiatra”. Rimos e prosseguimos na
nossa rotina nada rotineira, onde tomamos conhecimento de situações inusitadas,
sobre as quais, embora tomados de surpresa, precisamos encontrar palavras de
orientação e conforto. O povo simples, sem cultura, fica a mercê de curandeiros
e de médicos que receitam mas não acompanham os resultados de suas receitas (por
razões que não cabem ponderar no
momento); sofre desnecessariamente em consequência da falta de princípios, das
falhas do sistema de saúde e da ignorância. E o rapazinho insone, fica entre a
surra e a Ritalina. Mas eu só quis dizer.
Eu imagino a variedade de casos inusitados e, às vezes, chegando ao absurdo que encontras no dia a dia. Ao mesmo tempo, um farto "material" de vida!
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