segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Entre a surra e a Ritalina


Numa tarde de plantão, entrou na DP uma mulher acompanhada de um adolescente magrinho, de ar cansado. Não há erro, não, cansado era o jovenzinho. Logo, eu e meu colega verificamos tratar-se de mãe e filho. O menino sentou, apoiando os cotovelos sobre os joelhos, deixando que as mãos sustentassem o peso de sua cabeça. A mãe estava ali para registrar uma ocorrência. Contou que seus dois filhos eram doentes e tinham problemas, tomavam remédios receitados pelo “siquiatra”. Que dois indivíduos haviam ido a sua casa e oferecido trabalhos de cura espiritual, ou coisa que o valha, para resolver os problemas de saúde dos meninos. Para isso, cobraram a quantia de um mil e quatrocentos reais. Como o tal tratamento não surtiu efeito, na visita seguinte dos indivíduos ela reclamou. Os mesmos pediram mais setecentos reais para que o tratamento fosse concretizado com garantia de cura. Negou-se a pagar, dizendo que não queria mais saber de gastar dinheiro com um tratamento caro e que não apresentara qualquer resultado até o momento. Os indivíduos, provavelmente vendo a possibilidade de lucro frustrada, no dia seguinte esperaram pelo jovenzinho em seu percurso da escola para casa e lhe aplicaram uma surra “curativa”, quem sabe uma tentativa de exorcismo. A mãe ficou horrorizada ao saber da atitude dos supostos curandeiros. Depois do registro, arrisquei perguntar qual medicamento o guri tomava. Ela informou que o “siquiatra” havia receitado Ritalina. Perguntei se o menino era hiperativo. Saindo do estado de mutismo absoluto em que se encontrava desde sua entrada na DP, o menino, branco como uma vela, levantou a cabeça e respondeu num tom que beirava a irritação: -Eu não sou hiperativo, eu só não consigo dormir!
Diante disso, pensei comigo que nem a surra de exorcismo poderia superar os efeitos da Ritalina mal dosada e administrada diariamente. Eu e o colega aconselhamos que a mulher procurasse o médico, pois o remédio que este havia receitado poderia não estar fazendo o efeito necessário, eticetera e tal. Ela disse que provavelmente procuraria um médico de outra cidade, mesmo que fosse preciso pagar a consulta, pois não havia outro “siquiatra” na cidade em que ela residia, que era muito difícil conseguir uma consulta com o único existente. Apoiei a decisão, pois quem gastou com curandeirismo, certamente poderia pagar por uma consulta e dar a chance de o menino dormir como qualquer pessoa precisa. A mulher agradeceu o atendimento e a orientação e saiu, seguida pelo adolescente insone. Perguntei ao meu colega até quando eu poderia sobreviver naquele mar de absurdos, sem procurar um “siquiatra”. Rimos e prosseguimos na nossa rotina nada rotineira, onde tomamos conhecimento de situações inusitadas, sobre as quais, embora tomados de surpresa, precisamos encontrar palavras de orientação e conforto. O povo simples, sem cultura, fica a mercê de curandeiros e de médicos que receitam mas não acompanham os resultados de suas receitas (por razões que não cabem  ponderar no momento); sofre desnecessariamente em consequência da falta de princípios, das falhas do sistema de saúde e da ignorância. E o rapazinho insone, fica entre a surra e a Ritalina. Mas eu só quis dizer.     

Um comentário:

  1. Eu imagino a variedade de casos inusitados e, às vezes, chegando ao absurdo que encontras no dia a dia. Ao mesmo tempo, um farto "material" de vida!

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