Mais de um ano de trabalho e,
conseqüentemente, muitos plantões. O que mudou?
Em mim, muitas mudanças. Definitivamente não sou a mesma de um ano
atrás. Esse, no entanto, não é um comentário sobre o óbvio, pois me refiro a uma
transformação, talvez, sutil à percepção de alguns; mas exacerbada ao meu
sentir. Certa vez, uma amiga expressou a ideia de que, segundo o seu
entendimento, o policial deveria ter o olhar sereno de um guarda florestal, tal
como o meu. Achei graça e agradeci pelo estranho elogio. Não obstante a graça, suas
palavras foram extremamente marcantes, pois freqüentemente as relembro. Observo
atentamente os olhares que me cercam. Na DP, raros são os que transmitem esta
serenidade. Sei que o meu olhar mudou, e agora reflete uma realidade vivenciada
que, há um ano atrás, para mim, pertencia ao contexto distante que circula nos
jornais e na televisão. Há uma realidade que todos sabemos existir, mas que só
esporadicamente nos toca. Dela somos reféns e talvez por isso procuramos vê-la
como típica de um outro mundo, mundo esse que tememos como crianças temem o
“bicho papão”. Creio ser um mecanismo de defesa da nossa paz interior. Pois
bem, o meu trabalho me coloca exatamente em meio ao que a maioria gostaria de
ignorar. No mundo de “Alice no país das maravilhas”, onde tudo é cor e
descobertas, o olhar serena. Na realidade de uma DP, nada é cor.
Inexoravelmente encontramos o pior que o ser humano carrega em si, num desfile
contínuo de agressividades, vilanias, desonestidades. São condutas que imprimem
a desconfiança no olhar daqueles que, por decorrência do trabalho, contatam
freqüentemente com elas. É difícil saber quem mente quando as partes presentes
a nossa frente afirmam veementemente dizer a verdade. Aprender a não ter, nem
demonstrar, empatia é um exercício necessário. Por vezes, propositalmente,
procuramos criar um certo ar de empatia, pois, como estratégia, rende
informações valiosas à eficiência do trabalho. Tudo isso faz de nós, policiais,
profissionais especializados numa lida
nefasta, que deixa marcas no nosso olhar e na nossa expressão facial... É comum
a atividade profissional deixar certas características em quem a exerce. Fui
professora por um bom tempo e muitas vezes me flagro tendo preocupações que são
consideradas estranhas no meu atual ambiente de trabalho. Uma mesinha com
brinquedos para distrair crianças que acompanham os pais até a delegacia está
lá. Não as quero em meio à bagunça que os pais promovem. Delegacia não é lugar
de criança, mas os pais se agridem e elas vão junto, devido à falta de quem as
fique cuidando em casa. Não raras vezes os PMs chegam à DP conduzindo o marido
algemado e a mãe espancada. Esta, carregando um filho nos braços e um outro
pela mão. Manter o controle diante do triste quadro é tarefa difícil. E o que
pensar e fazer frente à fragilidade e o trauma das criancinhas reféns de uma
família completamente desestruturada? Não há muita opção para aquele curto
espaço de tempo tomado pelo registro da ocorrência. A mesinha com papéis e
lápis de cor é um breve alento. As crianças ficam divididas entre brincar e
permanecer junto da mãe. E a professora que ainda habita em mim procura, sem
encontrar, uma solução aceitável para a situação. Os meus olhos passam a
refletir descrença; descrença no mundo, na sorte, nos direitos individuais e em
tantas outras possibilidades que são negadas aos gerados sem pedir. Um ano é
uma vida de aprendizado. É tempo para conhecer o que não precisava existir. Mas
eu só quis dizer.
sexta-feira, 20 de janeiro de 2012
domingo, 8 de janeiro de 2012
A apoteose sexual do velhinho.
Do portão, eu o vi caminhando em
minha direção. O corpo franzino, numa postura a indicar cansaço, combinando com
os passos miúdos e inseguros. Era uma figura acabada, estampando o maltrato que
a vida dura imprimiu. Chegou até mim, tirou o chapéu num gesto de cumprimento
hesitante. Sorri e perguntei se podia ajudá-lo. Pobre velhinho, pensei, deve
estar com problemas. Em razão disso, mostrei o meu melhor sorriso, pensando em
deixá-lo mais confiante para expor seu problema. Ele não esboçou qualquer
intenção de entrar na DP. Disse apenas que precisava de uma orientação e de
imediato iniciou seu relato.
Contou que a mulher sempre fora
muito maledicente e que era assim com todos. Que não moravam mais juntos, por ela
não querê-lo perto, mas que já gastara o dinheiro todo da poupança e o da venda
de um terreno para sustentá-la, e que esta, atualmente, morava com uma das
filhas. Lamentou-se pelo fato de sua mulher estar matando a filha e o genro que
cuidavam dela. Relatou que os outros filhos não queriam proximidade com a mãe,
pois esta passava todo o tempo praguejando os que estavam próximos. Fiquei
extremamente compadecida com o lamento daquele velhinho, que me parecia estar
ao final da vida e merecia mais serenidade. Ponderei a ele que o comportamento
de difícil lida devia ser em decorrência de insanidade senil, possível de se
manifestar em idade avançada. No entanto ele, de pronto, exclamou que ela
sempre fora assim. E ainda acrescentou:- Antes, pelo menos era mais “leviana” (leve).
Agora, depois do AVC, ela engordou. Toma quatro cafés com leite, só na parte da
tarde, com pão e o que mais tiver!
Naquele momento, acho que
arregalei os olhos, embora quisesse manter a fleuma.
Disse ele numa fala incontida: - A
senhora imagina que ela antes tinha uns noventa quilos e, agora, deve estar com
uns cento e trinta. E como não consegue levantar para ir ao banheiro, faz tudo
nas fraldas.
Nessa altura do campeonato, eu já
passava as mãos na cabeça, num gesto nervoso, pensando numa saída para aquela
situação. Entendi a razão de filha e genro estarem “caindo pelas tabelas”
frente a um trabalho tão exaustivo; mas percebi uma expressão estranha no olhar
do homem; um misto de rancor em relação a sua mulher. Perguntei a idade dele,
ao que me informou ter 80 anos. Expliquei que ele deveria procurar o serviço de
assistência social da prefeitura, para arranjar uma clínica geriátrica,
poupando, assim, sua filha e genro de uma tarefa tão árdua. Mas ele queria
falar mais. De dentro da sala do plantão, sem que eu houvesse percebido, dois
colegas assistiam e ouviam atentamente a conversa, num silêncio divertido. E o
velhinho prosseguiu:- Ela sempre foi muito ciumenta e nunca me deixava
aproximar de uma mulher assim – fazendo um gesto com a mão em minha direção,
como para indicar a distância que havia entre nós.
- Me separei dela e nunca
fui..... – Deu, então, uma risadinha marota, franzindo ainda mais a face
enrugada.
Neste momento eu concluí que a
conversa precisava encerrar. Já estávamos entrando no foro íntimo da vida dele.
Ele insistia em repetir que nunca tinha “ido”, impedido por sua fidelidade,
forçada, a uma mulher ciumenta de noventa quilos, contra os seus prováveis sessenta. Finalmente, a fala
dele atingiu entusiasticamente a narrativa que me pareceu apoteótica.
- Pois a senhora sabe, que outro
dia, depois de tanto tempo, eu fui e fiz!
Aquilo foi demais. Aquela
criatura que caminhava precariamente, externava grande euforia para contar que
“fez”?!
- Me poupe, por favor! – pensei.
Assistir aquele homem tísico, aos 80 anos, externar seu lado de lobo, deixou-me
perplexa. Para encerrar a conversa,
reforcei a orientação sobre o serviço social e aleguei ter um trabalho para
executar. Ele agradeceu o atendimento e se pôs em lenta caminhada, recolocando
o chapéu na cabeça. Ao fazer meia volta para entrar na sala do plantão, deparei
com os dois colegas rindo. Um disse: -Atendeu o velhinho... Ele gosta de sexo,
não é? Surpresa, perguntei se eles haviam ouvido a nossa conversa. Rindo, o
colega respondeu que sim, mas que já sabia das aventuras dele, pois há alguns
dias o ancião estivera na DP com a mesma conversa sobre sua apoteose sexual. As
amarguras de sua vida eram, na verdade, uma forma introdutória para a narrar
seu feito sexual, aliás, um grande evento.
Mas eu só quis dizer.
quinta-feira, 5 de janeiro de 2012
Bom dia, loucura!
Manhã com um friozinho gostoso de
beira de rio. Depois de um dia agitado e de uma noite tranqüila, aproxima-se a
hora de encerrar o plantão. O que conclui o despertar é o café da manhã na
padaria bem próxima à DP. A refeição da manhã tem a finalidade fundamental de
me extrair do estado de catatonia em que levanto. Depois de dormir sobre um
colchão que parece uma massa, levanto toda doída e deixo meu formato gravado
nele. A saída é alongar e correr para a padaria. Viva o pão de queijo! Viva a
cueca virada!Viva o café com leite! Incrível! Uma alegria gastronômica na vida
da magrela! No curto trajeto, encontros e diálogos habituais:
- Bom dia, alemoa!
- Bom dia, querida! Tô indo pra
casa. Vô compá pon. Olha o meu cachorro, esse é meu, meu cachorro!
Acho que durante a noite fez
amizade com um cachorro de rua e este passou a seguí-la. Mas nem um cachorro
agüentaria acompanhá-la em suas caminhadas pela cidade.
-Legal, alemoa, muito bonito o
teu cachorro. Tchau, alemoa!
Sigo meu caminho e a deixo
falando alguma coisa ininteligível. Ela passa o dia inteiro caminhando pela
cidade, mas anuncia estar fazendo faxina. Ninguém imagina quando dorme. Algumas
vezes pergunta se ônibus já passou, mas nunca a vi subir nele. Caminho mais um
pouco e já visualizo o ciclista. Este me abana falando alguma coisa que nunca
consigo entender. Na mão, uma latinha de refri, que dizem ser um disfarce para
a cachaça. Mas, cachaça, cedo da manhã? Sua fala parece vir do interior de uma
cumbuca. Tem um som muito estranho. Conversa sozinho todo o tempo. Parece um
rádio ligado. Dizem que uma roda acertou a cabeça dele em cheio, o que o deixou
mais sequelado do que já era. Entro na padaria, cumprimento os conhecidos e
peço o meu café. Sento em uma mesa próxima à vitrine. É bom observar as pessoas
que passam em direção ao trabalho, ou que vão até a praia, para atravessar o
rio na barquinha que faz o vai-e-vem de pessoas entre as cidades. Próximo a
minha mesa está Adão. Olho para ele e com um “bom dia”, introduzo uma conversa.
- E aí, Adão, tomando o café para
começar ou encerrar o dia?
No seu traje de vigilante,
pistola de plástico em um coldre surrado, postura estudada para transmitir
cansaço, ele responde:
- Tô saindo, tava de plantão.
Naquele momento, ele “está” um
vigilante; mas, outras vezes, usa terno e passa a ser delegado. As pessoas
costumam dar-lhe uniformes e ele muda de profissão conforme a roupa que veste.
Há vários personagens em Adão. De correspondente internacional a agente
penitenciário. Mas ele adora polícia. Já disse que dará um curso de técnicas
operacionais para nós, da DP. Alguém deve ter falado no assunto e ele
memorizou. Contaram que fez até demonstrações em frente à Delegacia. Outro dia
mostrou os finos braços dizendo que está malhando na academia.
- Tô fortão! Puxando ferro!
Mostrei-me impressionada, e ele
ficou visivelmente envaidecido.
Meu café é servido e inicio o
gostoso delírio matinal. Dá uma alegria enorme estar ali, naquela pequena
cidade, tomando aquele café delicioso e cercada por meus loucos. Talvez eu
também seja um deles. De que tipo, não sei, mas certamente sou louca por café
com leite, pão de queijo e cueca virada. Então, só o que há para dizer é:
-Bom dia, loucura!! Isso tudo me faz muito
feliz! Mas eu só quis dizer.
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