sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Marcas no olhar.


Mais de um ano de trabalho e, conseqüentemente, muitos plantões. O que mudou?  Em mim, muitas mudanças. Definitivamente não sou a mesma de um ano atrás. Esse, no entanto, não é um comentário sobre o óbvio, pois me refiro a uma transformação, talvez, sutil à percepção de alguns; mas exacerbada ao meu sentir. Certa vez, uma amiga expressou a ideia de que, segundo o seu entendimento, o policial deveria ter o olhar sereno de um guarda florestal, tal como o meu. Achei graça e agradeci pelo estranho elogio. Não obstante a graça, suas palavras foram extremamente marcantes, pois freqüentemente as relembro. Observo atentamente os olhares que me cercam. Na DP, raros são os que transmitem esta serenidade. Sei que o meu olhar mudou, e agora reflete uma realidade vivenciada que, há um ano atrás, para mim, pertencia ao contexto distante que circula nos jornais e na televisão. Há uma realidade que todos sabemos existir, mas que só esporadicamente nos toca. Dela somos reféns e talvez por isso procuramos vê-la como típica de um outro mundo, mundo esse que tememos como crianças temem o “bicho papão”. Creio ser um mecanismo de defesa da nossa paz interior. Pois bem, o meu trabalho me coloca exatamente em meio ao que a maioria gostaria de ignorar. No mundo de “Alice no país das maravilhas”, onde tudo é cor e descobertas, o olhar serena. Na realidade de uma DP, nada é cor. Inexoravelmente encontramos o pior que o ser humano carrega em si, num desfile contínuo de agressividades, vilanias, desonestidades. São condutas que imprimem a desconfiança no olhar daqueles que, por decorrência do trabalho, contatam freqüentemente com elas. É difícil saber quem mente quando as partes presentes a nossa frente afirmam veementemente dizer a verdade. Aprender a não ter, nem demonstrar, empatia é um exercício necessário. Por vezes, propositalmente, procuramos criar um certo ar de empatia, pois, como estratégia, rende informações valiosas à eficiência do trabalho. Tudo isso faz de nós, policiais, profissionais especializados  numa lida nefasta, que deixa marcas no nosso olhar e na nossa expressão facial... É comum a atividade profissional deixar certas características em quem a exerce. Fui professora por um bom tempo e muitas vezes me flagro tendo preocupações que são consideradas estranhas no meu atual ambiente de trabalho. Uma mesinha com brinquedos para distrair crianças que acompanham os pais até a delegacia está lá. Não as quero em meio à bagunça que os pais promovem. Delegacia não é lugar de criança, mas os pais se agridem e elas vão junto, devido à falta de quem as fique cuidando em casa. Não raras vezes os PMs chegam à DP conduzindo o marido algemado e a mãe espancada. Esta, carregando um filho nos braços e um outro pela mão. Manter o controle diante do triste quadro é tarefa difícil. E o que pensar e fazer frente à fragilidade e o trauma das criancinhas reféns de uma família completamente desestruturada? Não há muita opção para aquele curto espaço de tempo tomado pelo registro da ocorrência. A mesinha com papéis e lápis de cor é um breve alento. As crianças ficam divididas entre brincar e permanecer junto da mãe. E a professora que ainda habita em mim procura, sem encontrar, uma solução aceitável para a situação. Os meus olhos passam a refletir descrença; descrença no mundo, na sorte, nos direitos individuais e em tantas outras possibilidades que são negadas aos gerados sem pedir. Um ano é uma vida de aprendizado. É tempo para conhecer o que não precisava existir. Mas eu só quis dizer.  

domingo, 8 de janeiro de 2012

A apoteose sexual do velhinho.


Do portão, eu o vi caminhando em minha direção. O corpo franzino, numa postura a indicar cansaço, combinando com os passos miúdos e inseguros. Era uma figura acabada, estampando o maltrato que a vida dura imprimiu. Chegou até mim, tirou o chapéu num gesto de cumprimento hesitante. Sorri e perguntei se podia ajudá-lo. Pobre velhinho, pensei, deve estar com problemas. Em razão disso, mostrei o meu melhor sorriso, pensando em deixá-lo mais confiante para expor seu problema. Ele não esboçou qualquer intenção de entrar na DP. Disse apenas que precisava de uma orientação e de imediato iniciou seu relato.
Contou que a mulher sempre fora muito maledicente e que era assim com todos. Que não moravam mais juntos, por ela não querê-lo perto, mas que já gastara o dinheiro todo da poupança e o da venda de um terreno para sustentá-la, e que esta, atualmente, morava com uma das filhas. Lamentou-se pelo fato de sua mulher estar matando a filha e o genro que cuidavam dela. Relatou que os outros filhos não queriam proximidade com a mãe, pois esta passava todo o tempo praguejando os que estavam próximos. Fiquei extremamente compadecida com o lamento daquele velhinho, que me parecia estar ao final da vida e merecia mais serenidade. Ponderei a ele que o comportamento de difícil lida devia ser em decorrência de insanidade senil, possível de se manifestar em idade avançada. No entanto ele, de pronto, exclamou que ela sempre fora assim. E ainda acrescentou:- Antes, pelo menos era mais “leviana” (leve). Agora, depois do AVC, ela engordou. Toma quatro cafés com leite, só na parte da tarde, com pão e o que mais tiver!
Naquele momento, acho que arregalei os olhos, embora quisesse manter a fleuma.
Disse ele numa fala incontida: - A senhora imagina que ela antes tinha uns noventa quilos e, agora, deve estar com uns cento e trinta. E como não consegue levantar para ir ao banheiro, faz tudo nas fraldas.
Nessa altura do campeonato, eu já passava as mãos na cabeça, num gesto nervoso, pensando numa saída para aquela situação. Entendi a razão de filha e genro estarem “caindo pelas tabelas” frente a um trabalho tão exaustivo; mas percebi uma expressão estranha no olhar do homem; um misto de rancor em relação a sua mulher. Perguntei a idade dele, ao que me informou ter 80 anos. Expliquei que ele deveria procurar o serviço de assistência social da prefeitura, para arranjar uma clínica geriátrica, poupando, assim, sua filha e genro de uma tarefa tão árdua. Mas ele queria falar mais. De dentro da sala do plantão, sem que eu houvesse percebido, dois colegas assistiam e ouviam atentamente a conversa, num silêncio divertido. E o velhinho prosseguiu:- Ela sempre foi muito ciumenta e nunca me deixava aproximar de uma mulher assim – fazendo um gesto com a mão em minha direção, como para indicar a distância que havia entre nós.
- Me separei dela e nunca fui..... – Deu, então, uma risadinha marota, franzindo ainda mais a face enrugada.
Neste momento eu concluí que a conversa precisava encerrar. Já estávamos entrando no foro íntimo da vida dele. Ele insistia em repetir que nunca tinha “ido”, impedido por sua fidelidade, forçada, a uma mulher ciumenta de noventa quilos, contra  os seus prováveis sessenta. Finalmente, a fala dele atingiu entusiasticamente a narrativa que me pareceu apoteótica.
- Pois a senhora sabe, que outro dia, depois de tanto tempo, eu fui e fiz!
Aquilo foi demais. Aquela criatura que caminhava precariamente, externava grande euforia para contar que “fez”?!
- Me poupe, por favor! – pensei. Assistir aquele homem tísico, aos 80 anos, externar seu lado de lobo, deixou-me perplexa.  Para encerrar a conversa, reforcei a orientação sobre o serviço social e aleguei ter um trabalho para executar. Ele agradeceu o atendimento e se pôs em lenta caminhada, recolocando o chapéu na cabeça. Ao fazer meia volta para entrar na sala do plantão, deparei com os dois colegas rindo. Um disse: -Atendeu o velhinho... Ele gosta de sexo, não é? Surpresa, perguntei se eles haviam ouvido a nossa conversa. Rindo, o colega respondeu que sim, mas que já sabia das aventuras dele, pois há alguns dias o ancião estivera na DP com a mesma conversa sobre sua apoteose sexual. As amarguras de sua vida eram, na verdade, uma forma introdutória para a narrar seu feito sexual, aliás, um grande  evento. Mas eu só quis dizer. 

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Bom dia, loucura!


Manhã com um friozinho gostoso de beira de rio. Depois de um dia agitado e de uma noite tranqüila, aproxima-se a hora de encerrar o plantão. O que conclui o despertar é o café da manhã na padaria bem próxima à DP. A refeição da manhã tem a finalidade fundamental de me extrair do estado de catatonia em que levanto. Depois de dormir sobre um colchão que parece uma massa, levanto toda doída e deixo meu formato gravado nele. A saída é alongar e correr para a padaria. Viva o pão de queijo! Viva a cueca virada!Viva o café com leite! Incrível! Uma alegria gastronômica na vida da magrela! No curto trajeto, encontros e diálogos habituais:
- Bom dia, alemoa!
- Bom dia, querida! Tô indo pra casa. Vô compá pon. Olha o meu cachorro, esse é meu, meu cachorro!
Acho que durante a noite fez amizade com um cachorro de rua e este passou a seguí-la. Mas nem um cachorro agüentaria acompanhá-la em suas caminhadas pela cidade.
-Legal, alemoa, muito bonito o teu cachorro. Tchau, alemoa!
Sigo meu caminho e a deixo falando alguma coisa ininteligível. Ela passa o dia inteiro caminhando pela cidade, mas anuncia estar fazendo faxina. Ninguém imagina quando dorme. Algumas vezes pergunta se ônibus já passou, mas nunca a vi subir nele. Caminho mais um pouco e já visualizo o ciclista. Este me abana falando alguma coisa que nunca consigo entender. Na mão, uma latinha de refri, que dizem ser um disfarce para a cachaça. Mas, cachaça, cedo da manhã? Sua fala parece vir do interior de uma cumbuca. Tem um som muito estranho. Conversa sozinho todo o tempo. Parece um rádio ligado. Dizem que uma roda acertou a cabeça dele em cheio, o que o deixou mais sequelado do que já era. Entro na padaria, cumprimento os conhecidos e peço o meu café. Sento em uma mesa próxima à vitrine. É bom observar as pessoas que passam em direção ao trabalho, ou que vão até a praia, para atravessar o rio na barquinha que faz o vai-e-vem de pessoas entre as cidades. Próximo a minha mesa está Adão. Olho para ele e com um “bom dia”, introduzo uma conversa.
- E aí, Adão, tomando o café para começar ou encerrar o dia?
No seu traje de vigilante, pistola de plástico em um coldre surrado, postura estudada para transmitir cansaço, ele responde:
- Tô saindo, tava de plantão.
Naquele momento, ele “está” um vigilante; mas, outras vezes, usa terno e passa a ser delegado. As pessoas costumam dar-lhe uniformes e ele muda de profissão conforme a roupa que veste. Há vários personagens em Adão. De correspondente internacional a agente penitenciário. Mas ele adora polícia. Já disse que dará um curso de técnicas operacionais para nós, da DP. Alguém deve ter falado no assunto e ele memorizou. Contaram que fez até demonstrações em frente à Delegacia. Outro dia mostrou os finos braços dizendo que está malhando na academia.
- Tô fortão! Puxando ferro!
Mostrei-me impressionada, e ele ficou visivelmente envaidecido.
Meu café é servido e inicio o gostoso delírio matinal. Dá uma alegria enorme estar ali, naquela pequena cidade, tomando aquele café delicioso e cercada por meus loucos. Talvez eu também seja um deles. De que tipo, não sei, mas certamente sou louca por café com leite, pão de queijo e cueca virada. Então, só o que há para dizer é:  
 -Bom dia, loucura!! Isso tudo me faz muito feliz! Mas eu só quis dizer.