Do portão, eu o vi caminhando em
minha direção. O corpo franzino, numa postura a indicar cansaço, combinando com
os passos miúdos e inseguros. Era uma figura acabada, estampando o maltrato que
a vida dura imprimiu. Chegou até mim, tirou o chapéu num gesto de cumprimento
hesitante. Sorri e perguntei se podia ajudá-lo. Pobre velhinho, pensei, deve
estar com problemas. Em razão disso, mostrei o meu melhor sorriso, pensando em
deixá-lo mais confiante para expor seu problema. Ele não esboçou qualquer
intenção de entrar na DP. Disse apenas que precisava de uma orientação e de
imediato iniciou seu relato.
Contou que a mulher sempre fora
muito maledicente e que era assim com todos. Que não moravam mais juntos, por ela
não querê-lo perto, mas que já gastara o dinheiro todo da poupança e o da venda
de um terreno para sustentá-la, e que esta, atualmente, morava com uma das
filhas. Lamentou-se pelo fato de sua mulher estar matando a filha e o genro que
cuidavam dela. Relatou que os outros filhos não queriam proximidade com a mãe,
pois esta passava todo o tempo praguejando os que estavam próximos. Fiquei
extremamente compadecida com o lamento daquele velhinho, que me parecia estar
ao final da vida e merecia mais serenidade. Ponderei a ele que o comportamento
de difícil lida devia ser em decorrência de insanidade senil, possível de se
manifestar em idade avançada. No entanto ele, de pronto, exclamou que ela
sempre fora assim. E ainda acrescentou:- Antes, pelo menos era mais “leviana” (leve).
Agora, depois do AVC, ela engordou. Toma quatro cafés com leite, só na parte da
tarde, com pão e o que mais tiver!
Naquele momento, acho que
arregalei os olhos, embora quisesse manter a fleuma.
Disse ele numa fala incontida: - A
senhora imagina que ela antes tinha uns noventa quilos e, agora, deve estar com
uns cento e trinta. E como não consegue levantar para ir ao banheiro, faz tudo
nas fraldas.
Nessa altura do campeonato, eu já
passava as mãos na cabeça, num gesto nervoso, pensando numa saída para aquela
situação. Entendi a razão de filha e genro estarem “caindo pelas tabelas”
frente a um trabalho tão exaustivo; mas percebi uma expressão estranha no olhar
do homem; um misto de rancor em relação a sua mulher. Perguntei a idade dele,
ao que me informou ter 80 anos. Expliquei que ele deveria procurar o serviço de
assistência social da prefeitura, para arranjar uma clínica geriátrica,
poupando, assim, sua filha e genro de uma tarefa tão árdua. Mas ele queria
falar mais. De dentro da sala do plantão, sem que eu houvesse percebido, dois
colegas assistiam e ouviam atentamente a conversa, num silêncio divertido. E o
velhinho prosseguiu:- Ela sempre foi muito ciumenta e nunca me deixava
aproximar de uma mulher assim – fazendo um gesto com a mão em minha direção,
como para indicar a distância que havia entre nós.
- Me separei dela e nunca
fui..... – Deu, então, uma risadinha marota, franzindo ainda mais a face
enrugada.
Neste momento eu concluí que a
conversa precisava encerrar. Já estávamos entrando no foro íntimo da vida dele.
Ele insistia em repetir que nunca tinha “ido”, impedido por sua fidelidade,
forçada, a uma mulher ciumenta de noventa quilos, contra os seus prováveis sessenta. Finalmente, a fala
dele atingiu entusiasticamente a narrativa que me pareceu apoteótica.
- Pois a senhora sabe, que outro
dia, depois de tanto tempo, eu fui e fiz!
Aquilo foi demais. Aquela
criatura que caminhava precariamente, externava grande euforia para contar que
“fez”?!
- Me poupe, por favor! – pensei.
Assistir aquele homem tísico, aos 80 anos, externar seu lado de lobo, deixou-me
perplexa. Para encerrar a conversa,
reforcei a orientação sobre o serviço social e aleguei ter um trabalho para
executar. Ele agradeceu o atendimento e se pôs em lenta caminhada, recolocando
o chapéu na cabeça. Ao fazer meia volta para entrar na sala do plantão, deparei
com os dois colegas rindo. Um disse: -Atendeu o velhinho... Ele gosta de sexo,
não é? Surpresa, perguntei se eles haviam ouvido a nossa conversa. Rindo, o
colega respondeu que sim, mas que já sabia das aventuras dele, pois há alguns
dias o ancião estivera na DP com a mesma conversa sobre sua apoteose sexual. As
amarguras de sua vida eram, na verdade, uma forma introdutória para a narrar
seu feito sexual, aliás, um grande evento.
Mas eu só quis dizer.
Silvinha, já pensaste em transformar em livro tuas crônicas? São leituras deliciosas!
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