quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Paradoxo.

À meia noite e meia tocou a campainha do plantão. Aberto o portão, entraram um homem e uma mulher, ambos de meia idade. O homem, semblante inexpressivo, absolutamente calado sentou-se no banco e ali ficou imóvel. A mulher, apoiada no balcão de atendimento, estendeu uma folha impressa aos plantonistas e sem rodeios expôs:

– Eu quero saber como eu posso usar isto contra ele. Ele diz que não pode nem sair na rua sem esse papel.

Os plantonistas verificaram se tratar de um indulto e perguntaram se a pessoa nominada no documento havia cometido algum crime no momento. Diante da negativa da mulher, pedem que a mesma informe quem seria o indultado. Para surpresa dos dois policiais plantonistas, a mulher respondeu ser seu companheiro. E, questionada sobre a razão de seu companheiro haver sido condenado, manteve a objetividade discorrendo calmamente: – Eu o denunciei porque abusou das minhas duas filhas, e daí ele ficou preso uns dois anos e meio.

– Pois é, senhora, ele já foi preso e recebeu indulto. Se ele não cometeu mais nenhum crime, está encerrado o caso. Mais alguma coisa? – explicou e perguntou um dos plantonistas.

– Então eu quero registrar uma ocorrência. – disse a mulher.

– Mas sobre o que, senhora? – pergunta o policial.

– É que eu estava cuidando dele, e as filhas vieram buscá-lo, e ele quis ir com elas. Ele faz hemodiálise e agora está no hospital. Eu acho que elas não estão cuidando bem da saúde dele.

Os plantonistas entreolharam-se numa comunicação muda sobre a total falta de entendimento da situação.

– Mas, senhora, que filhas? As suas? As que foram abusadas?

– Não, as dele, do casamento. Ele ainda é casado no papel com uma outra mulher. Até ia assinar a separação, mas as filhas o levaram embora. Eu dei treze anos da minha vida a ele, nós temos uma relação estável, e eu dependo do dinheiro dele para viver. Eu tenho muita dó dele, pois ele está doente. Ele ganha uma aposentadoria “boa”, e eu quero os meus direitos. O advogado disse que eu tenho direito, e me mandou registrar na delegacia que as filhas levaram ele.

Intrigado com o relato um dos policiais perguntou:

– E as suas filhas que sofreram abuso, são filhas dele também?

Diante da negativa da mulher o policial plantonista prosseguiu:

– Mas o que lhe importa se ele está sendo bem cuidado ou não? Já contou detalhadamente o caso ao seu advogado? Como pode querer trazer para a sua companhia e, ainda, cuidar de uma pessoa que abusou de suas duas filhas? Imagine o que elas sentem em relação a isso!

Rapidamente a mulher afirmou que as filhas já haviam perdoado o homem pelo mal que causara, e que não relatara maiores detalhes de sua conturbada relação ao advogado. Estupefatos os plantonistas enfatizaram que, antes de qualquer registro de fato, em tese, atípico, uma vez que não existia crime para registrar, ela deveria explicar com detalhes a sua situação ao advogado. Enquanto isso, o homem que a acompanhava, permanecia na mesma posição, inexpressivo, sentado no banco, quando muito fazendo alguns movimentos de concordância com a cabeça.

Agradecendo a orientação, a mulher garantiu que iria cedo da manhã ao advogado. Retirou-se da DP, seguida pelo homem, que aos olhos dos plantonistas mais parecia um espectro a acompanhá-la. Os plantonistas, já exaustos pelo adiantado da hora, ficaram olhando perplexos a saída da dupla.

O absurdo e o inusitado do acontecimento tiveram a propriedade de exterminar qualquer diálogo entre os dois policiais. Um deles apenas disse um fraco “eu vou dormir”. Buscaram suas camas. Dormir um pouco era vital. Não sabiam quando ocorreria o próximo toque de campainha a anunciar, quem sabe, mais um absurdo na madrugada.

Pela manhã, retornou a mulher, seu espectro – que sentou no mesmo local de algumas horas antes – e o advogado, para registrar o fato, em tese, atípico.

Das entrelinhas podemos depreender que o objetivo da mulher era trazer de volta o “companheiro” e sua aposentadoria para junto de si, num primeiro momento, sondando a possibilidade de fazer do indulto um instrumento para coação. Diante da impossibilidade constatada, partiu para a alternativa b: disputar o doente com as filhas do mesmo . E, se mal sucedida em obter o todo, requerer seu quinhão na aposentadoria daquele que ela se empenhou em colocar na prisão. Ela, segundo a própria, cheia de dó do doente; os plantonistas, com a maior cara de ponto de interrogação. Mas, eu só quis dizer.

Nenhum comentário:

Postar um comentário